Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 14 de setembro de 2019

Legalidade (2019): a democracia é uma delícia, mas tem certos custos

Com um enorme potencial desperdiçado, filme sobre campanha legalista falha ao tirar o protagonismo de quem de fato merecia para dar ênfase a um insosso triângulo amoroso e a uma subtrama de investigação totalmente descartável.

Desde o período denominado Cinema Novo a cinematografia brasileira definiu de vez seu estilo voltando as lentes de suas câmeras para acontecimentos e temas bastante relevantes – embora desprezados – a partir de uma perspectiva sócio-político-cultural. Não à toa, a fase da Retomada teve seu início marcado pela sátira biográfica “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”, de Carla Camurati, e se encerrou com o aclamado drama de ação “Cidade de Deus” de Fernando Meirelles e Kátia Lund, que retrata de maneira ímpar o crescimento do crime organizado em uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Dando sequência à tradição, em “Legalidade”, o diretor Zeca Brito (“Em 97 Era Assim”) resgata um dos momentos históricos quiçá menos lembrado, mas, simbolicamente, não menos relevante da luta pela democracia no Brasil.

Alternando sua linha temporal entre os anos de 1961 e 2004, a história tem como pano de fundo uma trama política centrada na figura do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (Leonardo Machado), que após a renúncia de Getúlio Vargas do cargo de Presidente da República passa a liderar o Movimento de Legalidade. Seu objetivo é tentar garantir que seu cunhado e vice-presidente, João Goulart (Fábio Rangel), retorne para assumir a presidência, impedindo assim, a instauração de uma Ditadura Militar no país. Em paralelo, há outras duas tramas que, além de inflarem o enredo ao ponto de torná-lo enfadonho, ainda comprometem de modo geral a qualidade da obra.

Bem menos interessante e relevante do que os conflitos políticos que de fato movem a narrativa, o núcleo do triângulo amoroso composto pela misteriosa ‘jornalista’ Cecília (Cleo), o repórter Tonho (José Henrique Ligabue) e seu irmão antropólogo, Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto), apela desesperadamente para todos os clichês conhecidos do gênero de romance e espionagem num claro intuito de tornar o filme mais atrativo e acessível ao grande público, consequentemente acabando por soar tedioso e previsível. Como se não bastasse, há também uma ociosa subtrama de investigação que ocorre em paralelo, na qual a filha já adulta de Cecília, Blanca (Letícia Sabatella), em uma espécie de Comissão da Verdade tenta descobrir que fim levou seus pais durante o período em que os militares tomaram o poder.

Por mais bem intencionado que possa parecer, o roteiro co-escrito por Brito e Leo Garcia (“Em 97 Era Assim”) é repleto de personagens caricatos que reforçam múltiplos estereótipos, como a mulher sexy e fatal, o apaixonado ingênuo e o intelectual idealista; fora os diálogos toscos como o de Cecília, que no afinco de se afirmar transgressora declama em um tom teatral “eu adoro coisas proibidas”; e situações surreais com direito a uma jornalista que em posse de um jornal antiquíssimo ousa rabiscá-lo por puro comodismo demonstrando uma total falta de noção. No entanto, nada é mais contestável do que a decisão da dupla de roteiristas em dar a Leonel Brizola o papel de mero coadjuvante enquanto o protagonismo é inteiramente entregue ao frívolo trio de amantes. Outro aspecto questionável é a função designada à personagem de Sabatella estando constrangedoramente avulsa na maior parte do tempo.

A direção em certos momentos até se mostra inspirada ao apresentar o governador gaúcho envolto à escuridão enquanto opera clandestinamente uma estação de rádio, porém, na maior parte do tempo – quando não está dando closes gratuitos nos atributos físicos de Cleo – o diretor aparenta estar filmando no piloto automático tamanha falta de originalidade. As atuações são em sua maioria novelescas, inconstantes e acima do tom. Na verdade, é até difícil definir o tom em uma obra com interpretações tão distintas entre si. Os sotaques sulistas de alguns personagens somem sem nenhum motivo aparente, assim como determinados penteados que vez ou outra mudam sozinhos e outros erros grosseiros que rompem abruptamente à imersão do público, como na cena em que um caminhão aparece ao fundo em um local onde supostamente deveria ser uma isolada reserva indígena.

Os únicos aspectos positivos que realmente merecem ser ressaltados são as atuações convincentes dos atores Fernando Alves Pinto, capaz de transmitir uma dose de verdade em sua performance, e em especial do já falecido Leonardo Machado, que em seu último trabalho encarnou perfeitamente o icônico Brizola. Em relação aos quesitos técnicos também se destacam positivamente as áreas de direção de arte, figurino e design de som que ajudam a ambientar precisamente o público na época em que grande parte do filme se passa.

No demais, Legalidade” decepciona ao desperdiçar todo o seu enorme potencial artístico e simbólico com personagens e tramas desinteressantes e dispensáveis que pouco ou nada contribuem para a genuína história de luta e resistência a ser contada. Ainda assim, na medida do possível, tem seu valor ao reconstituir de maneira crível um período e acontecimentos que, mesmo imbuídos de um certo romantismo e revisionismo histórico, contribuem para uma maior compreensão a respeito da época e da temática abordada.

Alan Fernandes
@alanfdes

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