Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 19 de setembro de 2019

A Vida Invisível (2019): sobre a condição de ser mulher

Melodrama do cearense Karim Aïnouz é uma história forte e realista sobre o que é ser mulher, e de como estar nessa posição traz consigo imposições e normas que as tornam invisíveis.

Uma das definições do dicionário Houaiss para o adjetivo “invisível” é de aquilo “que, por sua natureza, não tem visibilidade; que não se deixa conhecer”. Historicamente, essa condição de não se deixar conhecer – na verdade, de ser impedida de conhecer – pairou sobre a vida de boa parte das mulheres. Marielle Franco, Maria da Penha, Carolina Maria de Jesus, cada uma dessas, em seu respectivo momento, foi impedida de fazer com que sua voz fosse ouvida. Marielle foi morta, Maria foi violentada, e Carolina foi esquecida. Enquanto a sociedade não ensejou que o discurso feminino obtivesse notoriedade, puseram-lhes uma capa de invisibilidade, e suas histórias, por muito tempo, foram deixadas de lado. É com a intenção de tirar a capa de invisibilidade dessas e de outras tantas mulheres que Karim Aïnouz realiza “A Vida Invisível“.

No Brasil dos anos 1950, Eurídice Gusmão (Carol Duarte e Fernanda Montenegro) é uma jovem arredia e inocente que sonha em se tornar pianista e estudar no conservatório de Viena. Já Guida (Julia Stockler), sua irmã, é praticamente o oposto, mostrando-se uma mulher desinibida, efusiva e vulcânica. Enquanto Eurídice almeja ser uma musicista, Guida sonha em viver um grande amor, e por isso decide fugir com seu namorado. Quando retorna, grávida e sozinha, é expulsa de casa por seu pai e tenta entrar em contato com a irmã. Assim começa uma série de desencontros entre as duas, que embora separadas, possuem uma comunhão extraordinária, como se uma sempre pudesse sentir o mesmo que a outra.

A princípio, Eurídice e Guida são almas livres, meninas que acreditam em uma vida repleta de sonhos realizados. Porém, quando as duas começam a sair desse estado de pubescência e adentram o mundo da maturidade, tornando-se mães, e, no caso de Eurídice, esposa, passam a sofrer mutilações – as mentiras contadas pelos homens ao seu redor para controlá-las, o abandono, a violação de seus corpos – que vão, aos poucos, castrando-as. Assim, a audiência assiste a um encadeamento de oportunidades sendo perdidas pelas duas em razão das obrigações impostas pelos papéis que ocupam, e presencia as irmãs serem cada vez menos donas de si mesmas, cada vez mais invisíveis.

Em consequência disso, as personagens começam uma luta interna entre ser o que a sociedade impõe e de colocar-se em primeiro plano, de despir-se dessa invisibilidade que lhes foi imposta. Essa luta é absorvida e exteriorizada por suas intérpretes com brilhantismo. Julia Stockler, responsável por vivificar Guida, é de uma potência magnificente, que pode ser percebida em todos os seus movimentos: seu sorriso contagiante, a forma como sempre mantém a cabeça erguida (mesmo em situações de humilhação inacreditáveis), o desconforto de seu andar enquanto grávida, o modo como ela tenta – e nem sempre consegue – controlar o desespero em certos momentos, e até mesmo o simples jeito como segura e traga seu cigarro. É assim que a atriz carioca vai construindo Guida, conseguindo entregar uma personagem cheia de dor, mas, ao mesmo tempo, repleta de força.

Assim como Stockler, Carol Duarte, que vive os anos jovens de Eurídice, e Fernanda Montenegro, responsável os anos mais velhos da protagonista, carregam uma intensidade e veemência incomparáveis. Carol é iniciante em longas-metragens, mas a impressão que fica é de estar assistindo a uma mulher de extensa filmografia e experiência, e cada um de seus passos parece ter sido metricamente calculado, mas também completamente natural. Isso vai desde a brutalidade presente em seu andar; passando pelo olhar, que no começo é cheio de vida e esperança, mas que vai, aos poucos, se tornando um olhar cansado e desgastado; até a forma como ela trata o marido, ora com doçura, ora com desdém e repulsa. Essas particularidades são trabalhadas pela atriz com uma destreza singular, que apresenta uma personagem carregada de antíteses e questionamentos, mas também absolutamente apaixonante. Já  Fernanda Montenegro está presente apenas nos últimos minutos, mas é justamente nesses momentos onde o longa apresenta seu ápice de emoção. É aí que, sem dizer nada, simplesmente com o olhar, a Dama do Teatro prova (mais uma vez) possuir um domínio extraordinário de sua arte, e que é uma das melhores – talvez, a melhor – atrizes que o Brasil já produziu.

Apesar do foco narrativo estar em Eurídice e Guida, o filme também apresenta pinceladas das histórias de outras mulheres que estão envolvidas com as irmãs, como sua mãe, Ana, e a amiga de Eurídice, Zélia. Porém, entre essas mulheres, uma delas se destaca. Filomena é uma mulher negra, da periferia do Rio de Janeiro, que ganha dinheiro sendo babá para as mães da região em que vive. Ela é um perfeito retrato do que é ser uma mulher negra em um país cuja população nasceu da violência contra suas ancestrais, e Bárbara Santos, sua intérprete, é uma força da natureza. Mesmo não sendo uma das protagonistas, ela garante à personagem um lugar de fala de suma importância, destacando-se em todas as cenas em que aparece.

Além das ótimas atuações, a direção de Karim Aïnouz se sobressai, produzindo o seu melhor trabalho desde “Madame Satã” (2002). O cearense caracteriza o filme como sendo um “melodrama tropical”, apelido que não poderia ser mais certeiro. O melodrama, presente principalmente no roteiro, é o que ocasiona tanta comoção, e Aïnouz, junto de seus co-escritores Murilo Hauser e Inés Bortagary, o executa com maestria e sem exageros. Já o tropical traz consigo uma significação que vai além do simples fato de ter o Rio de Janeiro como plano de fundo. Ele é o que melhor representa o primitivo, o violento e a sujeira presentes na obra, que, aliás, são aspectos muito bem trabalhados pela parceria entre Karim e a diretora de fotografia Hélène Louvart. A forte granulação da imagem, as cores extremamente saturadas, os corpos sempre suados e os ambiente sempre pequenos são o que proporcionam para o público uma constante sensação de claustrofobia, de prisão, fazendo-os se sentirem, mais ainda, como Guida e Eurídice.

Em conclusão, Luca Guadagnino foi extremamente acurado quando expressou que “um filme como este mostra uma grande fé no cinema”. É a fé de que em um mundo repleto de Eurídices, de Guidas e de Filomenas, nenhuma delas está sozinha. Que existe pessoas como Karim, como Carol, como Julia, como Bárbara, que vão fazer a voz dessas mulheres ser ouvida, que vão contar suas histórias tão esquecidas, que não as deixaram mais ser invisíveis. Mas além disso, “A Vida Invisível” também é a fé de que em momentos de tentativa de desmanche do cinema brasileiro, ele se mantém de pé, rugindo, resistindo. E que, afinal, Fernanda Montenegro estava certa quando disse que “o Brasil vai dar certo. É na arte que o Brasil vai dar certo”.

Ana B. Barros
@rapadura

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