Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 10 de setembro de 2019

Rainha de Copas (2019): há algo de podre no reino da Dinamarca

Emocionalmente devastador, drama dinamarquês impressiona positivamente pela ousadia do roteiro aliada à excelentes atuações e a uma direção bastante refinada.

Inteiramente comprometida com a tarefa de nos tornar cúmplices de um tórrido relacionamento entre uma mulher de meia-idade e seu enteado adolescente, a diretora dinamarquesa May el-Toukhy (“Lang historie kort”) – despida de qualquer julgamento moral – surpreende ao criar uma verdadeira obra-prima logo em seu segundo trabalho à frente da direção. Sob comando de el-Toukhy, o drama “Rainha de Copas” fornece ao público todos elementos necessários para fazê-lo emergir em uma sombria e intrigante trama em que nada é simplesmente preto no branco.

Ambientada na Dinamarca, a história é contada do início ao fim pela perspectiva de Anne (Trine Dyrholm), uma advogada bem-sucedida empenhada em defender menores de idade vítimas de abuso e violência doméstica. Aparentando ter uma vida invejável, a renomada jurista divide seu tempo entre o trabalho no escritório em que é sócia e a criação de suas filhas gêmeas fruto de seu atual casamento com o médico workaholic Peter (Magnus Krepper). Quando o filho rebelde de seu marido, Gustav (Gustav Lindh), é enviado pela mãe para morar com eles após ser expulso de um colégio interno na Suécia, Anne sentindo-se atraída pelo rapaz vai aos poucos ganhando sua confiança até que, finalmente, o seduz, culminando em um caso extraconjugal que irá por em risco tudo o que já conquistou.

O ritmo narrativo imposto pelo roteiro de Maren Louise Käehne (“Shelley”) e el-Toukhy é imprescindível para o andamento fluído visto ao decorrer de todo o filme. O primeiro ato, dedica-se essencialmente a remover o verniz de perfeição que maquia todo o desapontamento que a protagonista nutre em relação à sua carreira e ao seu núcleo familiar. Em ambos os casos, as figuras masculinas centrais – esposo e sócio –  abertamente a pedem para que ela apenas concorde com eles e encerre a discussão, tais diálogos expõem tanto a sua personalidade inflexível quanto a fragilidade e insegurança dos homens que a rodeia. Com a chegada do problemático Gustav, Anne pode enfim extravasar seus desejos e frustrações por anos reprimidas assumindo a posição de dominante na relação.

A efetividade da obra em grande parte se deve as excepcionais atuações do elenco, sobretudo de Trine Dyrholm e Gustav Lindh, capazes de transmitir com primazia toda a veracidade necessária para compor personagens cujas ações, embora reprováveis, são ao mesmo tempo humanamente compreensíveis. Dyrholm impõe sua presença de modo a preencher todas as lacunas existentes na tela. Não há sequer uma só cena em que não apareça, no entanto, jamais torna-se enfadonha aos olhos do espectador. Embora bem mais jovem e significativamente menos experiente, Lindh mantém o auto nível de realismo entregando uma performance repleta de nuances que nos ajuda a adentrar sua mente consternada. A postura de bad boy sustentada por ele nada mais é do que uma carapaça que o protege dos sentimentos de tristeza e abandono gerados pela ausência e descaso de seu pai. Ao permitir se abrir para Anne e sua nova família, Gustav torna-se aos poucos mais dócil e vulnerável à medida em que experimenta pela primeira vez na vida a sensação de pertencimento e a emoção de ser querido e amado, o que inconscientemente sempre desejou.

Nesse aspecto, torna-se ainda mais descabido o fato de uma adulta profundamente conhecedora da lei e do modus operandi de um abusador ainda insistir em alimentar as fantasias de um menor de idade emocionalmente vulnerável. É de se imaginar que tal comportamento partisse de um perfil específico de indivíduo, porém, ao subverter as expectativas o longa-metragem nos alerta de que qualquer pessoa pode ser um potencial assediador e que, verdadeiramente, não estamos cientes disso. Em um certo trecho é sugerido que Anne pode também ter sido vítima de abuso no passado, o que provavelmente a motivou a seguir sua área de especialização. Ainda assim, o enredo evita a todo custo ceder a certas facilidades narrativas tão comuns em obras do gênero.

Infelizmente, o desfecho do segundo ato torna o evento final um tanto quanto previsível, mas não menos impactante e desolador. O sentimento que nos permeia durante à conclusão da história é quase que inevitável posto à falta de lealdade de um determinado personagem para com outro e as consequências advindas disso. Ainda assim, a direção se mantendo dentro de sua proposta não ousando julgar, nos apresentando motivações críveis o bastante para que possamos compreender as reais motivações por trás de tais atos desprezíveis.

Trágico e realista, “Rainha de Copas” é um drama conduzido com maestria capaz de ilustrar com perfeição o retrato de uma mulher em crise que motivada por um enorme ego e desejo se torna tudo aquilo que sempre combateu. Absolutamente livre de amarras e julgamentos, a obra não se priva em nenhum instante de nos mostrar de maneira bastante explícita a intensa relação entre um casal de amantes, cuja mera torcida para que não sejam descobertos e permaneçam no anonimato expõe muitas das nossas falhas e hipocrisias.

Alan Fernandes
@alanfdes

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