Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Elite (Netflix, 1ª Temporada): cisão entre forma e conteúdo [SÉRIE]

Mesmo tendo uma história de temas sociais importantes e contemporâneos que afetam os jovens, "Elite" possui um estilo novelesco que não corresponde ao drama e à sua tentativa de suspense.

Um rapaz ensanguentado na cena de crime em uma piscina, a chegada de novos alunos em um rico colégio e os primeiros contatos de jovens de condições econômicas distintas. São essas as primeiras cenas que indicam do que se trata a série “Elite“, disponível na Netflix: uma história sobre as turbulências nas vidas de jovens estudantes, que lidam com realidades sociais distintas e questões próprias da idade, e sobre o mistério em torno de um assassinato na escola. A aparência inicial de uma narrativa que trabalhe temáticas tão sensíveis, entretanto, se enfraquece diante de uma forma abaixo do seu conteúdo.

O primeiro episódio é suficiente para demonstrar como é a estrutura da produção. Em primeiro lugar, o modesto colégio público San Steban desaba por falhas da construtora. Em função disso, três alunos ganham bolsas para estudar na rica escola Las Encinas, Samuel, Nadia e Christian. Daí em diante, as trajetórias dos estudantes são contadas a partir das subtramas que conectam os personagens: o triângulo amoroso entre Marina, Samuel e Nano; a paixão entre Ander e Omar, dificultada pelo tradicionalismo da família deste último; o envolvimento de Christian com o casal Carla e Polo; e a difícil relação entre Nadia e Guzmán, agravada pela competitiva Lucrécia. Intercalando a linha cronológica principal, há inserções de depoimentos de todos os estudantes à polícia que revelam os suspeitos e a vítima.

Do ponto de vista temático, a série possui virtudes a serem elogiadas. Cada uma das subtramas oferece uma riqueza de possibilidades dramáticas por tratar de questões atuais, necessárias e relacionadas às vivências da juventude: desigualdades socioeconômicas, bullying, intolerância religiosa, vida na era digital, homofobia e sexualidade são algumas das muitas suscitadas pela narrativa. O ponto de partida é o contraste entre os alunos antigos de Las Encinas e os três recém-chegados, estes mal recebidos e ridicularizados por uma alta elite que despreza aqueles que não podem usar uma roupa cara, vivem em uma área afastada da cidade e têm hábitos diferentes, e se julga superior por conta do dinheiro e do status. Dessa problemática básica, é possível acompanhar os conflitos em torno das experiências sexuais que Carla e Polo fazem e incluem Christian, buscando apimentar a relação entre os dois; a dificuldade de Omar e Ander se assumirem como um casal por temor das reações dos amigos e do pai controlador de Omar; o preconceito de Guzmán e Lucrécia direcionado a Nadia e seus costumes religiosos, como o uso da vestimenta típica; e o impacto do ex-detento Nano no relacionamento entre seu irmão Samuel e Marina quando tenta se reinserir na sociedade.

Nem sempre a abordagem de temas de tamanha relevância garante o sucesso do desenvolvimento narrativo. Algumas subtramas carecem de maior aprofundamento, são finalizadas abruptamente e sem maiores avanços ou ignoram aspectos pertinentes dos conflitos, como se a narrativa preferisse ficar na superfície das discussões retratadas. Por exemplo, a relação dos demais personagens com os preceitos do islamismo é tratada brevemente, não se detendo aos significados do desconhecimento em relação ao outro; a homofobia praticada pela sociedade é limitada ao tradicionalismo da família de Omar; e a extrema competitividade estimulada pelo colégio sobre seus estudantes jamais é problematizada (o estilo de correção das provas e o lema de que estão formando os líderes do futuro são exemplos dessa falta de questionamento).

O mesmo desequilíbrio ocorre com o elenco, geralmente caracterizado por atuações caricatas (a vilanesca Lucrécia de Danna Paola), inexpressivas (o vazio dramático de Samuel de Itzan Escamilla) ou burocráticas (a maioria dos outros personagens), excetuando-se os trabalhos de María Pedraza e Miguel Herrán. Marina é a representação contundente da jovem segura de si, independente, em conflito constante com os pais e ameaçada por suas várias decisões erradas; já Christian é o despojado, autoconfiante e nada infantilizado jovem que se envolve em estranhas situações devido à sua vontade de prosperar na vida. Uma das principais razões para os desempenhos, em geral, insuficientes, é o caráter novelesco da produção observado pela forma como os núcleos avançam e pelo estilo da direção e da fotografia de Ramón Salazar (“Piedras“) e Dani de la Orden (“Luciano“) – em todos os episódios, predomina a iluminação simplista de estúdio que tenta emular um realismo, os enquadramentos excessivamente convencionais e a composição dos quadros com sucessivos planos americanos e uma montagem picotada de cortes em abundância.

O conteúdo é novamente prejudicado pela inclusão de passagens de suspense na estrutura narrativa. A estética dos episódios, tentando combinar drama e mistério investigativo, parece funcionar a princípio (a indefinição quanto à vítima no primeiro capítulo e a criação gradual de conflitos de todos os personagens com a vítima), porém a inserção dos depoimentos não é nada orgânica à trama: há um vaivém temporal entre esses relatos e a dinâmica dentro da escola que não apresenta nenhuma conexão, e uma aleatoriedade que faz a narrativa saltar de um acontecimento no passado para um depoimento no futuro envolvendo personagens e situações completamente diferentes. Ao final, a investigação é retalhada de maneira a inviabilizar o acompanhamento de seus rumos e a aceitar a multiplicação dos suspeitos.

Ainda que haja um cliffhanger possibilitador de uma segunda temporada, “Elite” tem algo muito mais intenso pelo qual será lembrado do que sua áurea de mistério: a cisão entre o tema e a estética. Todo bom audiovisual mostra como essas duas partes andam de mãos dadas, criando seus significados a partir de influências recíprocas. A série, por outro lado, faz com que seja necessário avaliar a importância social e dramática do conteúdo e apontar as falhas na forma novelesca de apresentá-lo.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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