Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Um Sonho de Liberdade (1994): homem x prisão

O cotidiano da prisão de Shawshank e as relações de seus presos são o mote para uma comovente e impactante história sobre o poder da esperança e da liberdade no íntimo dos seres humanos.

Um dos diretores que melhor adapta os livros e contos de Stephen King certamente é Frank Darabont. O cineasta captura como poucos o espírito das obras, levando para a tela grande não uma transposição idêntica ao material original, mas uma leitura própria à altura da fonte de inspiração. Essa capacidade pode ser observada em “O Nevoeiro“, “À Espera de Um Milagre” e em “Um Sonho de Liberdade“, filmes que mostram como o mestre do terror também tem talento para histórias dramáticas. Na produção em questão, o drama emerge da luta de um homem contra as prisões física e simbólica que se erguem ao seu redor e em seu interior.

Tudo começa com o conto “Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank” publicado em “Quatro Estações“. Na narrativa, o bem sucedido banqueiro Andy Dufresne (Tim Robbins) é condenado injustamente pelo assassinato da esposa e do amante dela e levado para a penitenciária de Shawshank no Maine. Sua pena: a prisão perpétua em um lugar que é o pesadelo dos detentos. A rotina é terrível por conta da crueldade do diretor e dos guardas, mas também pode oferecer a amizade com Red (Morgan Freeman), preso que lidera um dos grupos da prisão e arranja clandestinamente objetos pedidos pelos colegas.

Os males do encarceramento são rapidamente identificados como obstáculos à plena liberdade de Andy e dos demais. O isolamento em relação à sociedade, as punições severas representadas pelas penas longas ou pela prisão perpétua e o confinamento garantido pelos muros, cercas e guardas já são suficientes para expressar a adversidade dos presos. Porém, o filme vai além e também expõe o autoritarismo do diretor Warden (Bob Gunton), quando se apresenta aos novos detentos como um administrador apegado à disciplina e à sua própria compreensão da Bíblia, e a truculência do guarda Hadley (Clancy Brown), quando espanca um recém-chegado por chorar à noite na cela. Personagens e espectadores não só se sentem intimidados, como também sentem a ameaça de Shawshank nas tomadas aéreas do pátio e no contra-plongée engrandecedor do local durante a chegada do protagonista.

Além das figuras de autoridade, os próprios residentes da penitenciária também representam algum tipo de ameaça. O costume dos presos mais antigos de provocar os novos eleva a situação de tensão já existente, como se percebe na sequência em que apostam quem seria o primeiro a ceder às pressões da primeira noite. Seguindo o mesmo sentido, a tradição de formar diferentes grupos que protegem seu membros e intimidam ou agridem os outros detentos é outra prática feita pelos condenados que desestabilizam o enclausuramento. Quem não se encaixa em algum dos grupos eventualmente passa por  problemas sérios – é isso que acontece com Andy, inicialmente um solitário violentado pelo grupo dos homossexuais, até se aproximar de Red e fazer parte de seu grupo.

Shawshank ainda afeta aqueles que cumprem sua pena em uma dimensão inconsciente e intimista. Um longo período aprisionado faz com que os homens vivenciem e naturalizem uma rotina que dá alguma regularidade, alguma certeza às suas vidas (mesmo que seja ruim e adversa): passam bastante tempo nas celas, tomam banho de sol, interagem com os outros presos, se alimentam nos salões de refeição e enfrentam as autoridades do lugar. Estar muito tempo encarcerado e consolidar essa rotina como um hábito cria o que Red chama de preso “institucionalizado”, isto é, alguém que não sobreviveria fora da prisão por não conseguir se adaptar a um ambiente de liberdade. Brooks e Red sintetizam as sensações de um ex-preso que recupera a liberdade, mas não reconhece mais o mundo lá fora nem sabe como agir nele – daí, vem um vazio que os faz preferir a familiaridade que a prisão desperta.

É possível enfrentar o mal gerado pela penitenciária através da sociabilidade entre os criminosos. O sentimento de coletividade confere alguma força para lidar com a privação da liberdade ao ajudar no compartilhamento de experiências, além de humanizar os personagens: são brincadeiras e interações entre eles e que promovem a identificação junto ao público, apesar de serem homens condenados por crimes violentos. Desse modo, a atuação de Morgan Freeman é fundamental para tornar Red uma forte base emocional da narrativa, sendo o sujeito extrovertido e astucioso que contrabandeia objetos para a prisão, desfruta de alguns privilégios e ainda estabelece uma rica amizade com Andy.

Andy é o oposto de Red: silencioso, cultíssimo, observador, taciturno, por vezes, frio e incompatível com a prisão onde está. Mas, à medida que sua personalidade e suas virtudes se revelam, surge outra possibilidade para enfrentar as pressões do encarceramento: a força interior do homem – é ela que faz o protagonista conquistar privilégios ao fazer o imposto de renda dos guardas e do diretor e organizar a biblioteca. É uma força tão marcante que o próprio homem explica ao amigo o porquê de ter tantas esperanças e Red em uma narração em off  comenta como Andy sempre precisa ocupar sua cabeça com algo normal e corriqueiro. Tamanha complexidade não seria possível sem a performance contida e poderosa de Tim Robbins.

Jamais soando apelativo, “Um Sonho de Liberdade” é uma belíssima experiência cinematográfica sobre a luta do homem pela esperança e pela liberdade, mesmo em meio às injustiças e à opressão do sistema prisional. De tão poderoso que é, o filme não precisa utilizar elementos fantásticos, no sentido de sobrenatural, para ser chamado de fantástico. Ele é assim graças à excelência que carrega em sua humanidade.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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