Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 27 de agosto de 2019

Celular (2016): não atenda!

Adaptação de um dos best-sellers de Stephen King não dá espetáculo e falha até mesmo quando escrita pelas mãos do próprio grão-mestre.

A obra de Stephen King é quase como um divisor de águas na carreira de qualquer diretor. Conseguir adaptá-la – qualquer que seja ela – para o cinema, de maneira que faça o público sentir os mesmos arrepios e desconfortos causado pela leitura é uma tarefa um tanto indigesta, tamanha a variedade de detalhes que os livros oferecem e que às vezes pelo pouco tempo de duração de um filme podem passar despercebidos. Com “Celular”, o mediano diretor Tod Williams (“Atividade Paranormal 2”) é mais um que aceita o desafio. Com a intenção de mitigar os riscos e ao mesmo tempo obter o crivo de seu objeto de estudo, conta com um roteiro escrito pelo próprio King. Junte a esses elementos duas figuras importantes de Hollywood e pronto. A chance de algo dar errado torna-se mínima, certo? Errado! Apesar de uma sinopse intrigante, o resultado é uma produção problemática, sem o carisma e o apelo irresistível do universo horripilante criado pelo mestre do horror.

Na trama, após um cenário apocalíptico causado por um misterioso sinal enviado para celulares tomar conta da cidade e transformar toda as pessoas num tipo estranho de zumbis, o artista gráfico Clay Riddell (John Cusack, “Condução Perigosa”) começa uma busca incessante na tentativa de encontrar o filho ainda com vida em meio ao caos. Anos depois de terem atuado juntos em outra obra baseada na literatura de Stephen King (os atores contracenaram em “1408”, um terror bem recebido pela crítica especializada), os veteranos John Cusack e Samuel L. Jackson (“Homem-Aranha: Longe de Casa”) levam a experiência adquirida no passado para alavancar a narrativa, o que de certa maneira é um elemento positivo, já que o entrosamento e o empenho deles oferece ânimo. Ocorre que, por mais engajados com o trabalho, as interpretações não se sustentam sem os alicerces criativos e fantasiosos costumeiramente presentes nos livros. E nem Stephen King parece fazer ideia de como inseri-los.

O argumento escrito por ele em parceria com Adam Alleca é a prova do quão complicado é traduzir a imaginação de um livro para o formato de um filme. Existem sim ingredientes típicos como, por exemplo, a maquiagem assustadora, personagens de comportamentos estranhos, a presença de cenas extremamente violentas, com muito sangue, porém, são aproveitados de maneira superficial, gerando impacto mínimo ou pontual no espectador. Além disso, por mais que o clima de ‘fim dos tempos’ seja sempre um ótimo pretexto para aproximar as pessoas e estreitar as relações com mais rapidez, aqui os vínculos criados deixam transparecer a artificialidade e pressa na execução das motivações, tornando aquilo que era para ser um grupo lutando pela sobrevivência numa dança das cadeiras, onde não há preocupação com o que tem que sair. Soma-se ao roteiro inábil e repleto de diálogos desconexos, uma direção que opta por seguir um estilo tradicional evidenciado a cada cena.

Nos minutos iniciais da narrativa, quando a premissa absurda estoura, Tod Williams consegue, por meio de um steadycam e auxiliado por uma montagem acelerada, conferir uma atmosfera emergencial e preocupante acerca dos envolvidos. Aliás, é durante esse começo mais ‘cru’ – com pessoas raivosas se debatendo e matando umas às outras – que os atributos fantasiosos e incômodos se sobressaem, levando a audiência a comprar a ideia, por mais louca que possa parecer. Uma pena que, após uma sequência promissora, o mesmo Williams não demonstre capacidade para manter o ímpeto, perdendo fôlego gradativamente e aumentando a dependência de seus protagonistas talentosos. No entanto, prejudicados pela instabilidade dos recursos narrativos, eles sofrem com a perda de interesse por suas ações e indiferença com suas justificativas para seguir adiante. Não satisfeita, a direção abusa de tomadas longas para realçar a solidão e, por que não, a beleza das locações.

Amparado por um design de som simples, mas eficiente, de Marcelo Zarvos (“Mãe e Muito Mais”), no qual o assunto é propor desconforto e esquisitice, bem como uma direção de fotografia coerente de Michael Simmonds (“Halloween”), a qual se mostra perita em elevar o clima de afastamento e de um fim do mundo obscuro, “Celular” apresenta uma narrativa desregulada, sem ritmo e dependente de lampejos oferecidos por suas duas estrelas, que sem tanto brilho ao menos mantêm o público engajado até o final medíocre, bagunçado e incompetente na tentativa de chocar. O fato de não conseguir criar comparativos de sua história distópica com a realidade é mais uma coisa a pesar contra o argumento de Stephen King, que corrobora a máxima da dificuldade de transportar as linhas do livro para um roteiro. Se nem mesmo o próprio autor é capaz de se emular nessa produção com energia e o mínimo de singularidade, significa que esse celular não deveria jamais ter sido atendido.

Renato Caliman
@renato_caliman

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