Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 25 de agosto de 2019

Indústria Americana (Netflix, 2019): choque de culturas

Documentário produzido pela empresa do casal Obama em parceria com a Netflix, mostra os conflitos entre culturas distintas dentro de uma fábrica comprada por chineses nos EUA.

A recente disputa comercial entre China e Estados Unidos se acentua a cada dia, não mostrando sinais de estar perto de acabar. Lendo notícias em jornais ou vendo reportagens de TV, é difícil entender essa contenda em seus detalhes, mas no fundo tudo se resume ao custo de produção muito baixo oferecido pelo país asiático, possibilitando inundar o mundo com produtos com certa qualidade – cada vez melhor – com o preço muito acessível, prejudicando assim os produtores americanos, reféns de altos custos de produção, principalmente relacionados à cara mão de obra americana e todos os seus direitos trabalhistas, algo pouco presente na China. O documentário “Indústria Americana” traz para o plano tangível essa disputa entre chineses e norte-americanos, usando como caso a história de uma fábrica americana comprada por um empresário chinês. Fruto de uma parceria entre a Netflix e a produtora Higher Ground, do ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama e sua esposa, Michelle, a tentativa de adaptação de duas culturas tão diferentes, rende um documentário intrigante e curioso.

O enredo da produção nos leva para o estado de Ohio no ano de 2008, quando em plena crise financeira a General Motors decide fechar uma fábrica de carros na cidade levando à demissão de 10.000 pessoas. Anos depois, os moradores locais são surpreendidos com o anúncio de investimento no espaço da antiga fábrica por parte de grupo Fuyao, uma empresa chinesa fabricante de vidros para carros. É uma ótima representação do momento econômico atual, com companhias chinesas, e suas desconhecidas marcas, conquistando diversos novos mercados e substituindo marcas antes consolidadas, geralmente americanas.

Com total acesso as dependências da Fuyao Glass America, os diretores Steven Bognar e Julia Reichert, além de apresentarem os benefícios da integração sino-americana, também mostram a exploração exercida pela empresa sobre seus funcionários. Se no começo os americanos estavam esperançosos e gratos pela empresa chinesa investir no local, recuperando parte dos empregos perdidos com o fechamento da General Motors, aos poucos começam a surgir reclamações, como o baixo salário – menor que na época da GM – e as condições estressantes de trabalho. Além disso, chineses também são trazidos para trabalhar na linha de montagem da fabricante de vidros. É um modelo de cooperação, em que um trabalhador chinês atua com um norte-americano em uma estratégia de melhor integração entre as duas culturas. Isso resulta em cenas de integração e amizades entre os dois povos, com chineses pescando com moradores dos Estados Unidos e aprendendo mais sobre a cultura americana, assim como descobrirem ser permitido fazer piadas com o presidente sem nada acontecer.

Aos poucos vemos indícios que a “experiência” econômica e social mostrada na fábrica americana sobre controle chinês tem seus defeitos. Um deles aparece na figura do dono do conglomerado, o empresário Cao, e seus pedidos incomuns, desafiando os gestores americanos a entenderem a cultura chinesa. Sua ordem mais clara é a proibição de haver trabalhadores sindicalizados em sua fábrica, por, no seu ponto de vista, afetarem sua produtividade. Além disso, ele não consegue entender o motivo de trabalhadores ocidentais não servirem seus patrões como fazem os chineses, sem nunca questionar nada.

Quando os executivos americanos da Fuyao vão para a China conhecer a matriz da empresa, ficam intrigados com o modo como os funcionários trabalham, quase como soldados, obedecendo ordens sem discutir e trabalhando em turnos de 12 horas por dia. As horas extras são obrigatórias, algo inconcebível para a cultura americana, mas que a Fuyao sonha em tornar realidade e ajuda explicar porque o país se tornou a fábrica do mundo.

Demorando para aparecer na tela, em função da escolha de Bognar e Reichert em contar a história de forma linear, conforme os fatos vão acontecendo, o enredo central de “Indústria Americana” gira em torno de uma votação para decidir se a Fuyao nos Estados Unidos deve ter um sindicato como representante dos funcionários. A tensão e os argumentos dos funcionários a favor da medida e a estratégia dos chineses contra traduzem bem o acirramento entre duas culturas tão diferentes.

O principal mérito de “Indústria Americana”, além da sua história fluir de maneira natural com poucos momentos soando artificiais ou chapa branca, é apresentar ao público duas visões diferentes sobre o capitalismo. Ambas voltadas para o consumo de milhões, mas com o americano apresentando um processo produtivo mais humano. Já o chinês está mais interessado em extrair o máximo dos seus trabalhadores, não importando as condições de trabalho ou a opinião deles. Afinal de contas, que escolha essas pessoas têm dentro de um regime comunista/capitalista?

Apresentar um pequeno desvio em seu final, quando o tema da substituição da mão de obra por máquinas – representando um futuro ainda mais sombrio para os trabalhadores – entra em pauta de maneira repentina, não desmerece os méritos da produção, interessante e às vezes impactante durante suas quase duas horas de duração. O que “Indústria Americana” faz é nos apresentar a realidade de um mundo em constantes mudanças, mostrando, de maneira indireta, os motivos do crescimento constante da economia chinesa. Crescimento esse que, com todas as suas vantagens para o resto do mundo, principalmente para os EUA, acaba os ameaçando ao mesmo tempo. Uma contradição muito bem mostrada na história de uma fábrica de Ohio comprada por chineses.

Filipe Scotti
@filipescotti

Compartilhe