Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O Iluminado (1980): claustrofobia e insanidade

Mesmo sem a aprovação do mestre responsável pelo original, o terror é um clássico obrigatório para qualquer fã do gênero.

Não é nenhum segredo que o grande Stephen King prefere passar longe da adaptação cinematográfica de seu best-seller O Iluminado”. Dirigida pelo epopeico Stanley Kubrick (haja visto o aclamado ”2001- Uma Odisseia no Espaço”), a obra homônima apresenta uma visão um tanto distante daquela idealizada pelo escritor, deixando de lado a mitologia trabalhada nas páginas do livro para construir uma experiência mais sensorial. Esse desvio de foco, no entanto, não determina descaso em relação ao material original, e, muito menos, um longa fadado ao esquecimento. Pelo contrário, temos um terror autoral e revolucionário à disposição.

Quando a diretoria do vistoso hotel Overlook passa a procurar um novo zelador para cuidar do estabelecimento, o escritor Jack Torrance (Jack Nicholson, do premiado “Um Estranho no Ninho”) encontra na vaga a oportunidade perfeita para desenvolver seu novo romance. Acompanhado da esposa Wendy (Shelley Duvall) e de seu filho, o garotinho Danny (Danny Lloyd), ele então se muda para a afastada propriedade, responsável por sua manutenção durante o inverno. Não demora muito, no entanto, até que o isolamento, e eventos fora do comum, passem a afetar sua sanidade, tornando-o gradativamente mais perigoso à amada família. Eis aí o convite perfeito (brilhantemente inventado pelo autor de clássicos como “Carrie, A Estranha”) para mergulhar nos tenebrosos quartos do hotel Stanley (o belíssimo local no qual o longa foi rodado), palco perfeito para o  arrepiante espetáculo apresentado por Kubrick.

Dono de um estilo inconfundível, o diretor não tarda em deixar claro o seu grande objetivo, recebendo o público com uma longa cena inicial. Nela, acompanhamos a comprida viagem de Jack rumo a sua entrevista de emprego, seguindo seu pequeno fusca amarelo por uma tortuosa estrada em montes nevados. Estendendo-se por vários minutos, tal recurso pode até parecer desnecessário aos mais desavisados, mas a estranheza proporcionada pela inquietante trilha sonora (assinada pelo compositor Wendy Carlos) revelam a jogada do mestre atrás das câmeras. Desde este momento, ele transforma o espectador em outro hóspede do luxuoso Overlookenclausurado junto aos Torrance durante a fria estação do ano. Presos à hospedaria, estamos sujeitos às mesmas forças malignas que pairam sobre o autor frustrado (”evoluindo” ao lado do protagonista), consumidos pela solidão enquanto mergulhamos no horripilante conto.

Passando por este sedutor gancho, Kubrick segue na criação de um ambiente intensamente imersivo, explorando com maestria o assustador hotel. Usufruindo de um ritmo bastante próprio, ele opta por dividir a narrativa em “capítulos”, avançando pelos dias invernais através de enormes, e extremamente tensos, planos-sequência. Dos intermináveis passeios de Danny, desbravando os corredores escuros em seu triciclo, ao enervante momento vivenciado no macabro quarto 237,  o diretor prioriza a lenta construção do suspense (renegando usufruir dos saturados “jumpscares”), não temendo o possível afastamento de uma parcela do público. Dessa forma, obtém um resultado perturbador, conduzindo a plateia à paranoia e a contaminando com uma incerteza (sendo impossível prever o que vem a seguir) que permanecerá até os minutos finais.

Em relação ao roteiro (assinado pela autora Diane Johnson em conjunto com o próprio Kubrick), este também merece elogios, habilidoso em adaptar a obra-prima de King de maneira nada óbvia. Tendo como foco o desenvolvimento de uma densa atmosfera, o filme não se rende a diálogos expositivos, dando abertura a múltiplas interpretações sobre o que é representado na tela. Sendo assim, extrai muitos triunfos de sua marcante ambiguidade, deixando os significados por conta da plateia, seja esta constituída por indivíduos dispostos a aceitar elementos sobrenaturais ou por pessoas mais céticas.

De qualquer forma, é importante ressaltar que a dualidade presente no texto só funciona graças à exemplar mescla realizada entre as personagens Jack e Danny. Enquanto no primeiro encontramos uma figura paterna sendo levada à loucura, neste último temos a doce figura de um menino equipado com dons especiais, habilidades que lhe permitem se comunicar com fantasmas do passado. Cria-se, portanto, um interessante contraste, cabendo à audiência buscar respostas nas patologias da frágil mente humana ou nas fantasias do medo.

Por fim, vale destacar ainda o excelente trabalho dos membros da dupla entre pai e filho. De um lado, temos o veterano Nicholson em uma das melhores performances de sua carreira, indo de marcações sutis à psicopatia escancarada no melhor sentido possível. Do outro, temos em Lloyd um simpático ator mirim, capaz de cativar e assustar (com direito à bizarra voz de “Tommy”, amigo imaginário que incorpora em alguns momentos) na mesma medida. Não que, assim como eles, Duvall não exerça uma boa interpretação, mas é, infelizmente, reduzida pelo tratamento inferior dado à Wendy. Em meio a tantas conquistas, todavia, tal falha (e quiçá a única em toda a produção) passa totalmente despercebida.

Clássico, “O Iluminado” é uma atração claustrofóbica da qual é impossível se desvencilhar, obrigatória para qualquer amante de filmes de terror. Afinal de contas, pouco se compara à desesperadora estadia no Hotel Overlook, experiência que, mesmo não ultrapassando duas horas de duração, permanecerá por muito tempo após a emblemática cena final.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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