Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 25 de agosto de 2019

Eclipse Total (1995): família em crise

O drama, além de trazer uma das melhores atuações da carreira de Kathy Bates, consegue comover e prender a atenção do espectador em uma história muito bem construída.

Uma das adaptações menos conhecidas das obras de Stephen King, provavelmente por ter sido lançada muito próxima do clássico “Um Sonho de Liberdade” e não ser uma narrativa de terror, “Eclipse Total” conta a história de Dolores Claiborne (Kathy Bates, “Louca Obsessão”), acusada de matar Vera Donovan (Judy Parfitt), a idosa para quem trabalhava há mais de vinte anos. Quando o detetive John Mackey (Christopher Plummer) fica encarregado do caso, tenta fazer de tudo para provar que Dolores é a culpada. Vinte anos antes o marido da mesma morreu sob circunstâncias que ele considera estranhas e desde então Mackey tem certeza que ela o matou, mesmo sem conseguir provar. As coisas se complicam ainda mais quando Serena (Jennifer Jason Leigh, “Os Oito Odiados”), filha de Dolores e grande jornalista, descobre o que está acontecendo e volta para sua cidade natal após quinze anos sem visitar a mãe.

O filme já começa construindo bem o suspense com a cena da morte de Vera – mostrada de forma ambígua para o espectador – e a posição comprometedora onde Dolores se encontra quando o carteiro presencia parte do que aconteceu. Serena chega no outro dia para tirá-la da delegacia, pois os detetives não têm provas suficientes para mantê-la sob custódia. É bastante óbvio que tem algo muito errado entre mãe e filha quando Dolores não a reconhece de primeira. A partir daí a relação entre as duas se torna ainda mais tensa e reveladora para ambas.

A construção do relacionamento entre Dolores e Serena é feita de forma fascinante. É palpável que há muito que não foi dito no passado e que acabou causando o distanciamento entre elas. Nos dias atuais, Serena se choca com o jeito grosseiro que a mãe trata todos ao seu redor enquanto é muito calma e comedida com a filha. Dolores custa a aceitar que Serena tornou-se quase uma alcoólatra, que precisa de diversos remédios controlados para conseguir atravessar os dias e está sempre com um cigarro entre os lábios.

Os flashbacks são bem inseridos na trama para mostrar o que aconteceu vinte anos antes, quando o marido de Dolores, Joe (David Strathairn), ainda era vivo e Serena era uma adolescente. Eles se dão a partir do ponto de vista de Dolores, contando tudo que nunca disse para a filha. E é contando essas lembranças, principalmente sobre Joe, que os maiores desentendimentos entre as duas acontecem. Ele era um marido abusivo, que batia na esposa e a humilhava sempre que tinha oportunidade. Porém, Joe não agia dessa forma na frente da filha, o que faz com que Serena desconfie da mãe e ache que ela está tentando culpar todos os seus problemas no finado marido. Ao longo do filme, vamos descobrindo muito mais detalhes das dinâmicas entre a família e o porquê de Serena ter saído da cidade e nunca mais voltado.

É preciso falar sobre as atuações quando o assunto é “Eclipse Total”. Todos aqui dão o melhor de si, fazendo com que os relacionamentos entre os personagens principais sejam instigantes e interessantes de acompanhar, também graças ao ótimo roteiro de Tony Gilroy (“Rogue One: Uma História Star Wars”) e a direção precisa de Taylor Hackford (“Advogado do Diabo”). Kathy Bates, que em 1991 ganhou o Oscar por “Louca Obsessão”, outra adaptação do mestre do terror, está fantástica na pele de Dolores, em uma performance que apresenta todas as camadas que a personagem precisa ter para dar certo. As cenas entre ela e Plummer são tão bem construídas que só resta ao espectador desejar que houvesse mais confrontos entre os dois durante o filme. Quando Serena e Dolores estão em cena, apenas pela forma que Bates olha para a personagem de Leigh podemos ver o peso da dor que ela carrega pelas coisas que aconteceram no passado e que ela não pode mais mudar, e como ela se culpa, apesar de nunca precisar dizer isso com todas as palavras. Está tudo ali, meticulosamente construído nas nuances de Dolores Claiborne.

A maquiagem feita para envelhecer Bates nas cenas que se passam nos dias atuais da narrativa é muito competente. A atriz muda toda sua fisicalidade nos momentos que precisa interpretar sua versão mais velha e, consequentemente, mais frágil. A trilha sonora de Danny Elfman, apesar de funcionar bem na maioria das cenas, em outras acaba distraindo o espectador do que está acontecendo por conter um som muito mais alto do que o necessário: o drama todo está ali e o exagero da trilha em certos momentos acaba tirando o foco de cenas que já falam muito por si só. Alguns efeitos visuais, principalmente no último ato, já estão bastante datados e não convencem mais.

Com um final um pouco arrastado, porém bastante tocante, “Eclipse Total” é uma adaptação de King que deveria ser muito mais conhecida por todos os méritos que carrega. O terror aqui não são monstros nem situações de outro mundo, mas sim o mal irreparável que a nossa própria família pode nos causar.

Lívia Almeida
@livvvalmeida

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