Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O Aprendiz (1998): convivendo com o inimigo

A inusitada relação entre um jovem estudante e um senhor de idade envolvido com o nazismo produz um thriller psicológico surpreendente e tenso.

O Aprendiz” se inicia com uma aula de História sobre o nazismo e o Holocausto, na qual o professor aborda as controvérsias em torno do apoio, indiferença ou desconhecimento dos alemães diante desses acontecimentos. O que parece impensável no passado, se repete no presente com os grupos neofascistas espalhados pelo mundo e com o próprio tema do filme dirigido por Bryan Singer (“X-Men: Apocalipse“). O diretor parte da interação entre um jovem e inteligente estudante colegial e um idoso que esteve nos campos de concentração nazistas para trabalhar a fascinação pelo mal em algumas pessoas.

A história nasce da adaptação do conto “Aluno Inteligente”, escrito por Stephen King e publicado na coletânea “Quatro Estações”. Enquanto Todd (Brad Renfro, “Esquina da Morte“) pesquisa sobre o nazismo, descobre que seu vizinho Arthur (Ian McKellen, “Senhor dos Anéis“), na verdade, se chama Kurt Dussander e foi um oficial nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Ao invés de denunciá-lo, o jovem exige ouvir relatos sobre os campos de concentração, iniciando um perigoso jogo psicológico que torna a relação nociva para ambos.

O maior acerto da narrativa é se concentrar na dinâmica entre os principais personagens, criando uma energia crescente de tensão e degradação moral. A premissa incomum mostra como previsões para o andamento da trama caem por terra, afinal a curiosidade mórbida do estudante pelas atrocidades cometidas durante o Holocausto é o ponto de partida para reviravoltas de acontecimentos e evoluções dos personagens. Todd parece ter tudo sob controle, chantageado Kurt com um dossiê comprometedor, porém vê o cenário mudar favoravelmente para o idoso com o passar do tempo e, em seguida, se transformar em um impasse prejudicial para os dois indivíduos. À medida que as conversas entre os dois se prolongam, rememorando o passando e ouvindo os testemunhos detalhados daquela violência, a relação passa a envolver uma dependência tóxica baseada em segredos, falsificações e crimes que desperta o pior dos dois. Kurt chega a mencionar ironicamente que uma “amizade” se formou entre eles graças ao laço danoso entre aqueles que se detestam, mas não podem mais viver tranquilamente separados.

Grande parte do entrelaçamento destacado entre os personagens se deve à construção de Kurt. A escalada dos conflitos dramáticos e psicológicos é simbolizada pelas reações do sujeito à confrontação de seus segredos por um adolescente: inicialmente, uma rejeição em admitir a verdade misturada ao falso inconformismo de ser identificado como nazista; seguida pela admissão discreta da identidade e de suas ações completada pelo espanto diante da situação incomum; e concluída com o despontar de uma violência adormecida no homem, que volta a praticar atos brutais como se tais comportamentos pertencessem à sua natureza (atitudes que, gradualmente, aumentam de gravidade). O mérito ao redor do personagem também está associado à atuação de Ian McKellen, desde a cuidadosa composição do sotaque até as transformações pelas quais passa exemplificadas pela cena em que é obrigado a marchar dentro de casa.

Ligeiramente abaixo do necessário para o personagem está a performance de Brad Renfro. Não tanto por sua própria culpa, já que o ator consegue transmitir os impactos resultantes da convivência próxima com Kurt: o desempenho escolar cai, pesadelos vívidos surgem, uma capacidade de manipulação se manifesta, riscos cada vez maiores se apresentam e a violência é praticada. A ressalva a ser feita está no roteiro e na direção, que não constroem convincentemente o estado inicial do garoto como alguém inteligente, simpático e comum. As transformações pelas quais passa estão lá, pontuadas com coerência e ritmo, porém falta o contraste mais pronunciado com quem a produção diz que ele era.

As variações da dinâmica entre Todd e Kurt também são o alvo das escolhas estéticas de Bryan Singer. O cineasta retrata os diferentes momentos de superioridade e aparência de controle para cada personagem através dos enquadramentos, ora enfocando o jovem de baixo para cima, ora fazendo o mesmo com o idoso – uma estratégia visual responsável por tornar imponente uma dessas figuras e indicar a mudança de posição entre eles. Além disso, algumas cenas específicas são construídas com tamanho cuidado estilístico que sua essência dramática salta aos olhos e afetam o espectador: por exemplo, a marcha de Kurt dentro de casa, a atitude do sujeito quando encontra um gato e o incidente mais violento da trama.

Não se poderia excluir a importância da montagem na estruturação dessas cenas tensas e impactantes. Especialmente na sequência que encerra a obra, percebe-se o efeito da montagem paralela para encadear os desdobramentos dramaticamente definitivos das jornadas de Kurt e Todd, sejam eles de risco de vida ou de radicalização da personalidade. As marcas deixadas por essa convivência são claramente expressas pelo vaivém das resoluções de cada personagem. O encadeamento do filme apenas peca na indicação da passagem de tempo, elemento vital para ressaltar o vínculo doentio e prolongado estabelecido entre eles.

“O Aprendiz” pode até se desviar um pouco do material original no desfecho da narrativa, mas nada que comprometa a captação da essência da história contada. A fascinação que o mal pode desencadear nas, aparentemente, mais inocentes figuras é o ponto central de um thriller eficiente que prende sempre a atenção do público. Nada como uma boa construção de ambientação, de dinâmica de protagonistas e um ator do calibre de Ian McKellen para garantir uma boa sessão.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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