Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 18 de agosto de 2019

As Trapaceiras (2019): comédia leve e requentada

Ficando à sombra de suas versões anteriores, este remake até diverte, mas peca devido aos exageros nas atuações e à falta de criatividade do roteiro.

Os anos 80 nos presentearam com inúmeras boas comédias americanas tão divertidas quanto memoráveis. Mesmo no final da década, apesar da já notória saturação do gênero, excelentes títulos ainda eram lançados aos montes, entre eles “Os Safados” (1989) se destaca por ser uma obra à frente de seu tempo. Embora se trate de um remake de “Dois Farristas Irresistíveis” (1964) estrelado por David Niven e Marlon Brando, a versão oitentista optou por fazer uma releitura mais moderna e subversivamente mais feminista da obra, além de presentear o público com performances hilariantes da dupla Michael Caine e Steve Martin, ambos no auge de suas respectivas carreiras. Já a nova refilmagem, “As Trapaceiras”, preferiu meramente seguir à risca a mesma história, replicando praticamente todos os principais elementos da obra dos anos oitenta em que se baseou, tomando algumas poucas liberdades criativas como a inversão do gênero de seus personagens principais.

A história tem início com a falastrona Penny (Rebel Wilson, “Megarrromântico”) tentando aplicar um golpe em um sujeitinho superficial que sonha encontrar a personificação da mulher ideal. Ao ter seu plano frustrado pela polícia que passa a lhe perseguir, a jovem golpista se vê forçada a mudar de ares viajando para a cidade fictícia de Beaumont-Sur-Mer, situada na Riviera Francesa. Chegando lá, conhece a sofisticada e bem-sucedida vigarista Josephine (Anne Hathaway, “Calmaria”), a quem convence meio que a contragosto a lhe treinar na astuciosa arte da vigarice. Após concluir seu pretenso treinamento, passam a trabalhar juntas enganando velhotes ricos com predileção por mulheres jovens. No entanto, ao perceber que estava sendo ludibriada, Penny rompe os laços com sua mentora e começa a competir com ela. A fim de encerrar de vez essa disputa, ambas fazem uma aposta que consiste em quem irá conseguir arrancar primeiro a quantia de quinhentos mil dólares do jovem e ingênuo programador Thomas Westerburg (Alex Sharp), restando à perdedora deixar a cidade.

Aparentando estarem realmente se divertindo em seus respectivos papéis, Rebel Wilson e Anne Hathaway entregam de maneiras distintas performances mutuamente caricatas. Enquanto Wilson, como de praxe, abusa do humor físico, apelando de maneira excessiva para o uso de caretas e maneirismos histriônicos, Hathaway adota um peculiar sotaque britânico enquanto mantem um notório semblante blasé do início ao fim. Embora haja certa química na dinâmica das duas atrizes, suas atuações somente encontram um tom coeso na segunda metade do filme, quando ambas passam enfim a rivalizar.

Além da visão feminina de Jac Schaeffer (“Viúva Negra”), todos os três roteiristas das adaptações anteriores incluindo Stanley Shapiro (“Correndo Contra o Tempo”), Paul Henning (“A Família Buscapé”) e Dale Launer (“Tom’s Nu Heaven”) também foram creditados pela autoria do roteiro. Nada mais justo considerando o massivo uso do material incluindo até mesmo piadas e diálogos replicados de forma bastante semelhante na nova versão. Apesar de se tratar de um remake de um remake, a história segue sendo o ponto alto da obra, embora falhe consideravelmente no desenvolvimento da personagem Josephine. Apesar de justificar suas tramoias alegando que homens subestimam e objetificam mulheres e que por isso merecem ser enganados, na falta de um antecedente ou real motivação que justifique tais atos, a personagem acaba parecendo se tratar de uma psicopata, capaz de manipular pessoas e forjar emoções para atingir seus objetivos. No entanto, o maior erro do roteiro está, ironicamente, na troca de gênero das protagonistas que enfraquece o plot final, cujo teor feminista se perde em detrimento de uma mensagem inacreditavelmente inversa a do clássico dos anos oitenta.

A direção do estreante em longas-metragens, Chris Addison, é simplesmente desprovida de qualquer resquício de autoralidade, o que talvez possa ser justificado devido a eventuais imposições do estúdio. Conjecturas à parte, a condução do diretor não chega a ofender o público ou a prejudicar o ritmo narrativo, seguindo inócua e mais preocupada em emular o que já feito no passado do que, necessariamente, criar algo novo com uma identidade própria.

Em contrapartida, o diretor de fotografia Michael Coulter (da série “Wild Bill”) demonstrou ser capaz de imprimir uma certa originalidade, compondo belas imagens com cores quentes e levemente saturadas, transmitindo vivacidade sem cometer o terrível equivoco de soar brega. Outro quesito técnico que merece ser elogiado é o figurino criado por Emma Fryer (da série “Riviera”), cujos modelos auxiliam intrinsecamente na composição dos personagens, sobretudo Josephine. A elegância de seus vestidos a torna impossível de não ser notada mesmo em um ambiente repleto de glamour e requinte.

Em suma, trata-se de uma comédia leve e requentada, cujo gosto poderá agradar aos menos exigentes dispostos a uma diversão momentânea e de fácil digestão. Para aqueles que não se enquadram neste perfil, recomenda-se enfaticamente que assistam às outras duas versões anteriores, em especial, ao clássico de 1989. Em ambos os casos, resta apenas lamentar a oportunidade desperdiçada, uma vez que  a obrigatoriedade de replicar fielmente a obra, perceptivelmente, limitou o potencial criativo desta nova releitura com personagens femininas. Este argumento torna-se ainda mais drástico quando evidenciamos que o teor da mensagem originalmente transmitida no plot final é grosseiramente descaracterizada em função de tal imposição. Resta apenas torcer para que em uma eventual continuação (ou novo remake) não cometam o mesmo erro.

Alan Fernandes
@alanfdes

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