Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 14 de agosto de 2019

O Animal Cordial (2017): “o homem é o lobo do homem”

Em seu longa de estreia, Gabriela Amaral Almeida traz uma pegada autoral e particular de que todos somos animais.

Ao iniciar “O Animal Cordial” com teclados distorcidos e figuras detalhadas do corpo humano em cima de um vermelho forte, a diretora Gabriela Amaral Almeida deixa claro que iremos ver algo diferente. A estreante em longas se utiliza da estética surtada de Gaspar Nóe, unida ao jeitinho brasileiro, para contar a história de Inácio (Murilo Benício, “Divórcio”), o dono de um restaurante em São Paulo que não tem uma boa relação com seus funcionários. Calado, e quando fala geralmente é de forma cabisbaixa, ele tem sua vida alterada quando assaltantes invadem seu estabelecimento para roubar seus clientes: um policial aposentado e um casal com bastante dinheiro, além de seus funcionários, a garçonete Sara (Luciana Paes, “Uma Quase Dupla”) e o chef Djair (Irandhir Santos, “Redemoinho”).

A medida que o tempo passa, segredos vão sendo revelados, atitudes duvidosas são tomadas e porventura muito sangue é derramado. A influência do gore e dos filmes slasher é clara, mas nem um pouco galhofa como em muitos desses tipos de produções. Gabriela usa a câmera para acompanhar os personagens em sua saga de mostrar os desejos mais profundos do ser humano. Naquela noite não existem regras, não existem leis, e as metáforas visuais e textuais com nosso comportamento animalesco latente ficam mais claras.

O cenário se mostra um ambiente hostil, seja a cada frase nada sutil proferida, ou pelos closes que anunciam a tragédia. Existe um toque do Novo Extremismo Francês (movimento marcado pela violência e sexo) tanto na trilha estilizada e bastante exagerada em momentos que aparentemente são banais, como no discurso embutido, mascarado pela fotografia e visual autorais da diretora. Ela trabalha com a tensão, ocultação dos fatos e um leve toque minimalista. A luta de classes, a homofobia, o racismo, a xenofobia, todos tendo como pano de fundo altas doses de violência gráfica e cenas de sexo visceral.

A entrega de Benício e Paes faz com que os personagens sejam apenas amálgamas de si mesmo. Em dado momento não é possível conhecê-los, ao passo em que nem eles mesmos sabem quem são. Uma paranoia os afeta, um sentimento de inveja, provindo da bagagem cultural e pelas experiências de vida dos reféns. O horror está na figura humana, no animal dentro de nós, que nos transforma em assassinos em potencial. O terror do instinto se mistura com o da clandestinidade omissa, afinal, o que você faria se pudesse fazer o que quisesse, sem que ninguém veja?

Cercado de extremos, “O Animal Cordial” brilha pelo choque do inesperado. Em alguns momentos se torna previsível, mas é corajoso ao não trazer redenção, mostrando que na vida real, existe um ponto onde não tem mais volta. Intenso e menos sádico do que se imagina, estamos diante de um terror atmosférico e ousado, que coloca o homem e seus insanos desejos no centro de tudo. A frase que consta no título da crítica ficou conhecida em “Leviatã”, obra de Thomas Hobbes, e se encaixa perfeitamente nesta narrativa cercada de interesses pessoais e sanguinários.

Tiago Soares
@rapadura

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