Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 09 de agosto de 2019

Euphoria (HBO, 1ª Temporada): não é mais um besteirol adolescente

Uma série que se propõe a ir muito além do cotidiano adolescente, perpassando por questões de amadurecimento e da própria vida adulta com um primor estético louvável.

Euphoria” narra o dia a dia de um grupo de alunos no fim do ensino médio e os seus respectivos embates com temáticas comuns a essa idade, como a descoberta da sexualidade e o desenvolvimento das amizades. A série faz isso focando na personagem Rue (Zendaya, ” Homem Aranha: De Volta ao Lar“),  que assumidamente tem um problema quanto ao vício em drogas. Sob esse panorama, são desenvolvidas sequências densas e bem explícitas, com largo aparecimento de nudez e de cenas de potencial gatilho para distúrbios de dependência. Elas conferiram à obra opiniões controversas e que decerto não a tornam aprazível ou de fácil digestão. Isso é provavelmente o que torna a série tão diferente de outras produções voltadas ao público adolescente que surgiram nos últimos anos – não só a agressividade, posto que choca, mas a autoconsciência e a responsabilidade com que escancara momentos tão duros, como uma overdose, sem idealizá-los de forma alguma. Confere-se assim um mérito especial ao diretor e roteirista Sam Levinson (“Bastidores de um Casamento“) e a toda sensibilidade perceptível com que tratou esta série da HBO, uma vez que muito da sua própria trajetória é retratada em tela.

A série avança copiando a fórmula consagrada de outros títulos do gênero, como “Skins” e “Lost”, em que cada episódio foca primeiramente no recorte de um momento vivido por um personagem específico para, posteriormente, partir para o contexto geral em que se insere algum desdobramento dessa ocorrência. A maneira em que esses acontecimentos-chave são apresentados é, contudo, muito curiosa e inovadora, pois a obra parte de traumas vividos na infância de cada figura. Eles decorrem na personalidade e em possíveis distúrbios apresentados por esses personagens atualmente. Dessa forma, acaba-se conhecendo mais profundamente Rue, Jules (Hunter Schafer), Kat (Barbie Ferreira), Nate (Jacob Elordi), do mundinho particular de cada um e do grupamento de problemas e questões internas que todos eles, sem exceção, vivem cotidianamente.

Ademais, ressalta-se que um dos maiores triunfos dessa produção diz respeito a sua estética peculiar e entusiasmada. Predomina, em toda a série, a opção por uma fotografia saturada, pendendo geralmente para o contraste entre azul e vermelho, com o uso de uma luz muito particular que parece privilegiar os glitters, os paetês e os neons largamente usados na cenografia, no figurino e na maquiagem. Além disso, a quantidade de variações de planos e de angulações – frequentemente com viradas de câmera vertiginosas a 180 ou a 360 graus – e de transições inusitadas – por raccord, por exemplo – dão um aspecto muito dinâmico à experiência de assistir “Euphoria”. Essa característica dinâmica também é proporcionada pela montagem muito competente de Julio Perez, com cortes secos e quebras de linearidade que, definitivamente, funcionam.

Falar dessa série sem discorrer sobre as atuações é deixar de lado um dos principais motes para a obra funcionar. Dessa maneira, a escalação de elenco foi cirúrgica na opção pela Zendaya como protagonista, uma vez que a atriz está muito confortável no papel e realmente se entrega a ele de forma catártica, proporcionando ao espectador sequências efetivamente críveis e emocionantes. Entretanto, provavelmente o brilho da obra é atribuído preferencialmente à personagem de Jules, que se torna melhor amiga da protagonista, de forma a quase dividir o foco narrativo com ela. Essa sublime interpretação surpreende, acima de tudo, por ser o primeiro contato de Hunter Schafer com atuação. A leveza e a naturalidade com que a moça desempenha quase simbioticamente a sua personagem são de encher os olhos – “culpa” da confluência da trajetória da atriz com a de sua Jules. Sob essa perspectiva, a química entre as duas atrizes também é muito forte e convincente – mérito que, entretanto, não pode ser atribuído de forma igualitária ao resto do elenco. Existem sim, desempenhos que se destacam fora desse círculo principal, como Barbie Ferreira, muito segura no papel de Kat, mas, no geral, os outros papéis não escondem o amadorismo dos intérpretes e parecem sequer chegar em um nível de convencimento satisfatório. Uma cena específica merece destaque: a do lago, no quarto episódio, posto que Jacob Elordi (Nate) ilustra quase um Edward Cullen (aquele de “Crepúsculo”) no espectro de inexpressividade beirando o cômico.

Mesmo com isso, a série não deixa de ser excepcional e um retrato preciso da juventude contemporânea. “Euphoria” tenta (e consegue) retratar toda uma geração que cresceu com o desenvolvimento das redes sociais e da internet e que é um reflexo desse nicho. Dessa maneira, a obra mostra como toda a exposição e ansiedade por atenção moldam as relações interpessoais no mundo de hoje. Ela revela uma rede de comportamentos que pode parecer estranha aos mais anciãos, como o revenge porn, o uso de nudes como moeda de troca e a obsessão dos jovens por selfies e por aplicativos de paquera. A série também mostra como tudo isso interfere diretamente na imagem do adolescente de hoje sobre o outro e sobre si, muitas vezes distorcidas. Por meio de discussões vitais sobre autoestima, relacionamentos abusivos, dependência afetiva e expressão do ego como imagem dos pais, Sam Levinson retrata com precisão a euforia que é viver no século XXI e toda a cobrança diária que sentimos para sermos únicos, eficientes e felizes – desde que seu comportamento não seja díspare do que é socialmente concebido como “único, eficiente e feliz”. É mais um passo no sentido da aceitação da identidade de ser um adolescente real, com todos os ônus e bônus inerentes a isso.

Lígia Amora
@rapadura

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