Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 07 de agosto de 2019

Miss Bala (2019): ação novelesca

Involuntariamente contraditório, o remake recorre excessivamente ao uso de estereótipos na tentativa de construir uma heroína inspiradora.

Como uma praxe cada vez mais comum na indústria cinematográfica hollywoodiana, as adaptações de filmes estrangeiros demonstraram ser uma fórmula relativamente segura e eficaz encontrada pelos estúdios para capitalizarem em cima de histórias de certa forma já validadas, mesmo que em uma escala significativamente menor. Une-se esta tendência à crescente demanda nos últimos anos por protagonistas femininas fortes e independentes, logo, é facilmente presumível a razão pela qual o remake de “Miss Bala” foi lançado em 2019, apenas oito anos após a estreia do original mexicano homônimo. Embora a nova versão seja consideravelmente fiel ao seu material de origem, é compreensível e justificável que, devido à necessidade de apresentar a obra ao grande público, a refilmagem, imbuída deste compromisso, optou por realizar mudanças pontuais que ajudaram a tornar a trama mais palatável para diferentes culturas, sobretudo a americana.

O enredo acompanha Gloria (Gina Rodriguez, da série “Jane, a Virgem”), uma americana de ascendência mexicana que, ainda que sem muito destaque, trabalha como maquiadora profissional em Los Angeles. Ao receber um chamado de sua amiga de infância, Suzu (Cristina Rodlo, da série “The Terror”), dirige até sua cidade natal, Tijuana no México, a fim de ajudá-la a participar do concurso de beleza Miss Baja California. Após testemunhar um terrível tiroteio em uma boate, a jovem se dá conta do desaparecimento de Suzu. Ao tentar encontrá-la acaba sendo sequestrada e forçada a cooperar com o líder do cartel local, o mexicano-americano de olhos verdes Lino (Ismael Cruz Cordova, da série “Berlin Station”), e com o agente policial incrédulo Brian Reich (Matt Lauria, “Shaft”), em um jogo duplo que pode lhe custar a vida e a segurança das pessoas próximas a ela.

Apesar de repleto de personagens estereotipados e unidimensionais que sem nenhuma justificativa plausível alternam numa mesma frase palavras em inglês e espanhol, o filme se sustenta, fundamentalmente, nas atuações de Gina Rodriguez, capaz de exprimir com primazia todo o desespero e confusão interna de sua personagem, e Ismael Cruz Cordova, cujo charme e malícia criam um ar de mistério em torno do vilão. Ambos atores ajudam a elevar substancialmente a qualidade do material que lhes foram entregues. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito do restante do elenco que varia entre atuações medianas, semiamadoras e subaproveitadas. Anthony Mackie (“Vingadores: Ultimato”), por exemplo, embora esteja funcional em seu papel, tem tão pouco tempo de tela que visivelmente foi escalado apenas para cumprir tabela e reforçar o marketing que visa de forma desonesta ludibriar os fãs desavisados.

O roteiro do estreante em longas-metragens, Gareth Dunnet-Alcocer, é propositalmente frenético, evitando a todo custo dar tempo ao público para refletir a respeito das inúmeras inconsistências presentes no enredo, obrigando a protagonista a tomar decisões estúpidas e impulsivas tão somente para avançar a trama. No entanto, este aspecto é relativamente atenuado em função da perspectiva da heroína, que se encontra em constante estado de choque, fazendo com que o espectador compartilhe de sua visão e desespero mediante a tamanho perigo.

Além disso, os diálogos em sua totalidade são expositivos e pueris. A crítica à misoginia enraizada na sociedade é tratada de maneira bastante superficial, servindo apenas de pano de fundo, assim como o debate a respeito da política antidrogas dos EUA e a busca por identidade de indivíduos multiétnicos. Lamentavelmente, há um forte sentimento de oportunidade desperdiçada.

A diretora Catherine Hardwicke, que no passado dirigiu “Crepúsculo”, espantosamente opta por emular, mesmo que de forma sutil, a relação entre o casal protagonista de seu antigo sucesso com o novo totalmente disfuncional, substituindo a jovem estudante Bella pela ingênua maquiadora Gloria, e o vampiro Edward pelo sequestrador e narcotraficante Lino. Mesmo possuindo finais distintos, a romantização problemática sugerida no filme não deixa de ser preocupante. Em ambos os casos há um espelhamento entre os casais, no qual a mocinha deslocada descobre seu lugar no mundo ao conhecer um homem perigosamente sedutor e poderoso que se apaixona perdidamente por ela. Por mais que neste caso o final soe como uma subversão desta estrutura, a diretora peca no momento em que romantiza uma relação claramente abusiva, estimulando inclusive parte do público a torcer por um final em que a vítima e seu algoz terminem juntos.

Por fim, o tom do filme oscila entre o novelesco e o cinema de ação genérico. Nesse sentido, o elemento suspense funciona bem melhor do que a ação. Todos os quesitos técnicos como direção, fotografia, figurino, design de produção e trilha sonora são simplesmente operantes e nada memoráveis. Se não fosse pela entrega da dupla de atores Gina Rodriguez e Ismael Cruz Cordova, que apesar do roteiro desconexo e cheio de furos transmitem verdade e carisma, este seria apenas mais um produto comercial vazio de baixíssimo valor artístico. Ainda assim, trata-se de uma obra contraditória, carregando em si todos os preconceitos e estigmas de seus idealizadores, apesar de possuir subtextos e mensagens inversamente opostas. Girl power, pero no mucho.

Alan Fernandes
@alanfdes

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