Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 11 de agosto de 2019

The Boys (Prime Video, 1ª Temporada): a subversão do heroísmo [SÉRIE]

Caótica e viciante, "The Boys" é a desconstrução que todo fã de super-heróis esperava.

Não é nenhum segredo que os filmes de heróis são sinônimos de sucesso no mercado cinematográfico, sempre alcançando bilheterias milionárias e conquistando legiões de fãs mundo afora, constantemente ansiosas pelas próximas (e geralmente intermináveis) aventuras. Embora sustentados por fórmulas certeiras, estas que costumam envolver o surgimento de uma grande equipe e a salvação do universo, vários estúdios decidem dar chances a abordagens alternativas no gênero, por vezes visando modernizá-lo, produzir algo único, ou ao menos contribuir com alguma novidade. Foi o caso de “Logan” (2017), grandiosa releitura do famoso Wolverine (imortalizado por Hugh Jackman) trazida pela Fox Studios, e era o claro objetivo da Amazon Prime Video quando “The Boys” foi anunciado em 2016.  Três anos mais tarde, essa deliciosa subversão dos queridos encapuzados aterrissa no serviço de streaming, provando que felizmente essa tendência não veio para ficar restrita às telonas.

Quando sua adorável namorada é brutalmente assassinada por um famoso super-herói, o covarde Hughie Campbell (Jack Quaid, “Rampage”) decide protestar contra o abusivo comportamento das celebridades sobre-humanas. Enfurecido, ele é guiado por seu interesse até o lunático Billy Butcher (Karl Urban, “Thor: Ragnarok“), perigoso assassino que se revela líder de uma peculiar equipe de mercenários dedicada a subjugar os mega poderosos. Juntos, os vigilantes partem em uma arriscada jornada para se vingar do grupo The Seven (uma versão babaca da grandiosa Liga da Justiça), notória liga heroína que encontra em suas habilidades especiais um passe-livre para fazer o que bem quiser. Baseado na HQ homônima criada pelos polêmicos Garth Ennis (aqui também envolvido com a adaptação, ao lado de Erick Kripke) e Darick Robertson, é a partir dessa insana premissa que o seriado conquista o espaço ideal não só para chocar o espectador com violentas cenas de ação, como também para inserir importantes tópicos ao redor dessas figuras que tanto idolatramos.

A maneira como a produção se beneficia de suas amplas liberdades, concedidas ao longo de seu desenvolvimento, é o primeiro aspecto a ser enaltecido. Repleta de momentos chocantes, a série (sem temer o inevitável afastamento do público mais jovem) faz jus à sua alta classificação indicativa (que deve ser levada muito a sério) através de visuais carregados de gore (rendendo inesquecíveis imagens) e altas doses de nudez. São detalhes cruciais na construção do clima sombrio e adulto que se destaca ao longo dos episódios, afastando a obra de outras do tipo. Embora possa soar excessivo, o uso desse recurso, além de incrivelmente divertido nos momentos mais sangrentos, mostra-se dosado de forma bastante inteligente, não se tornando exagerado ou cansativo como é (na opinião de vários fãs) no material original.

Outra sábia mudança que a produção soube aplicar em relação às páginas dos quadrinhos é a quantidade de personagens presentes na tela. Em menor número, existe tempo para um bom desenvolvimento de todas as figuras principais, de modo que mesmo as mais coadjuvantes possuem ao menos um alívio cômico do qual se orgulhar. Merecem maior atenção, no entanto, a dupla central marcada pelo atrito entre as personalidades de Hughie e Billy e, principalmente, o grandioso Homelander (Antony Starr, “Queria que Você Estivesse Aqui”), antagonista que entra com estilo para o panteão dos vilões que amamos odiar.

Em relação à dupla, vale destacar o contraste entre os arcos vividos pelos dois justiceiros de forma que, enquanto o frágil Campbell compreende que existem outros meios para a justiça além da vingança, Butcher afunda em uma sádica ruína motivado por um trauma do passado. Ao antagonista, por sua vez, cabe dizer que sua gradativa construção, alavancada por uma impressionante performance de Starr, o faz ir muito além da clara sátira ao eterno Superman, sendo gratificante a adição de pistas que buscam na infância do super-herói as respostas para justificar o tamanho de sua monstruosidade.

Não há dúvidas, todavia, que a grande cereja do bolo é a desconstrução do mito daqueles que possuem superpoderes e, em especial, os temas que esta permite trabalhar. A bem conduzida trajetória de Starlight (Erin Moriarty, “Capitão Fantástico”), única integrante pura entre os sete poderosos, traz, por exemplo, barbaridades cometidas contra as mulheres nos bastidores de grandes companhias e, além disso, as tóxicas influências que os símbolos femininos podem exercer sobre jovens mulheres.

Igualmente interessantes são as frequentes contradições protagonizadas pelos “supes”, estrelas de grandes filmes e moldes para mentes infantis, mas que são modelos tão suscetíveis ao vício em drogas e sexo, entre outros, como qualquer pessoa. Seu enorme poder, como se não bastasse, os corrompeu, despreocupados com os “danos colaterais” que podem causar. Isso tudo sem falar ainda da ácida crítica às marcas construídas a partir dessas personalidades (com direito a uma hilária cutucada ao MCU de Kevin Feige) e da excelente indireta à hipocrisia de alguns líderes religiosos (presente em um dos melhores episódios da temporada) dispostos a condenar nos demais o que não aceitam em si mesmos.

Por fim, vale também destacar a divertida reprodução do “consenso” a respeito da inutilidade do popular personagem da DC Comics, Aquaman. Aqui sua representação atende pelo nome de The Deep (Chace Crawford, “Eu Aceito… Até Desistir”), um infame super poderoso que, responsável por um ato abominável logo no primeiro episódio, é “recompensado” com uma série de desventuras extremamente satisfatórias para o público.

Desse modo, é encantadora a forma como a subversão dos super-heróis funciona em “The Boys”. Divertida e caótica, a série é um presente aos fãs do gênero que, mesmo repleta de sangue e superpoderes, ainda encontra espaço para discutir temas essenciais. Fica a expectativa de uma segunda temporada igualmente brilhante.

Davi Galantier Krasilchik
@davikrasilchik

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