Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Diamantino (2018): um devaneio neon

Uma obra de tom agridoce, esteticamente perfeita e de muitas camadas, mas com um senso de ironia enfadonho.

Diamantino” se situa em Portugal e parte do recorte da vida de um jogador de futebol e ídolo internacional no momento em que seu talento é posto à prova. Sob essa perspectiva, Diamantino, personagem principal que dá nome ao longa e encenado por Carloto Cotta (“Tabu”), se vê diante de uma guinada em sua vida após a derrota em uma grande final e decide largar sua carreira, acreditando veementemente que esse era o fim de seu dom. O panorama serve para a construção de distintos arcos e subtramas, sempre embebidos de um forte tom satírico e que conseguem criticar questões atuais e situar muito bem a obra no seu recorte temporal, destacando bem o seu caráter autoconsciente.

Assim, o roteiro de Gabriel Abrantes e de Daniel Schmidt (ambos de “Palácios de Pena” e também incumbidos da direção e da montagem) passa por temas robustos e complexos, como a questão dos refugiados na Europa, o Brexit, a ascensão de ideias fascistas, dentre outros aspectos internacionais contemporâneos. A maneira como esses assuntos são retratados é, entretanto, tão apressada e pontual que passa um pouco a sensação de que se está assistindo a um brainstorm e não a uma obra roteirizada e, teoricamente, pensada com cuidado. Essa abordagem problemática é sentida pelo espectador não só durante esses momentos de crítica, mas em parte da narrativa, de modo que muitas cenas parecem desconexas em suas sequências, com muitas pontas soltas esquecidas e arcos sem desenvolvimento satisfatório. Um revés que provavelmente se deu de modo atrelado a uma edição pouco eficaz, quiçá experimental em demasia.

Tais falhas, apesar de macularem o resultado final da obra, não a tornam de todo ruim. A direção de arte é um dos muitos triunfos que “Diamantino” carrega, com a opção de Cypress Cook e Bruno Duarte (ambos de “Tabu”) por uma fotografia belíssima com tratamento de cor puxado para tons saturados, frequentemente tendendo para o neon. Ademais, o trabalho de cenografia de Charles Ackley (“The Unity of All Things”) ajuda a compor o arcabouço fantástico e satírico do filme, com detalhes que vão desde outdoors a roupas de cama estampando o protagonista, terminando de situar o personagem no caráter quase imaculado e idolatrado que o roteiro começa a construir de forma satisfatória. Esse esmero quanto aos aspectos artísticos confere ao longa uma estética sublime e um status de experiência audiovisual quase orgásmica, e promete agradar mesmo aos espectadores mais exigentes.

Além disso, o filme levanta debates muito pertinentes acerca da construção de ídolos e das falsas noções de humanidade que surgem com essa criação. É frequente durante a obra que se faça o confronto do espectador com a figura de Diamantino, infantilizada e perdida em meio a uma fama que parece ter caído de bandeja em sua vida. Dessa forma, ele muitas vezes não reconhece seus próprios anseios e medos, muito menos compreende o mundo ao seu redor, posto que se perdeu nessa personagem divinizada e de única função – a de jogar futebol – que lhe foi imposta. Sob essa óptica, com a posterior rejeição do jogador pelo público após (aparentemente) sua primeira falha, o longa escancara essa sede social, ao mesmo tempo, crônica e efêmera, de criar heróis inertes os quais, a qualquer sinal de desordem, perdem sua serventia e são enxotados tão abruptamente quanto ascenderam.

Dessa maneira, “Diamantino”, além de frenético, surreal e onírico (um destaque especial para a cena em que cachorros gigantes se misturam com o protagonista em um campo de futebol), é um sensível estudo de personagem, mérito também da excelente atuação de Cotta. Com isso, por mais que existam efetivamente muitas falhas, a obra não deixa de ser um interessante retrato de conflito do eu com o social, de forma que o que prevalece no espectador no fim é um sentimento de identificação e de afeto com a confusão interna e externa que o protagonista vive – tão caricata, mas, na mesma medida, tão crível e familiar a todos nós.

Lígia Amora
@rapadura

Compartilhe