Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 29 de julho de 2019

Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese (Netflix, 2019): músico ou ator?

Ainda que a restauração das imagens nos aproxime da presença do músico, o mockumentary de Martin Scorsese nos distancia da pessoa de Bob Dylan e enaltece sua figura.

Para aqueles que querem conhecer mais da trajetória de Bob Dylan, o documentário “No Direction Home”, também de Martin Scorsese (“Silêncio”), é mais indicado. A obra de 2005 aborda o começo da carreira do músico de forma linear e com imagens raras. No entanto, para o espectador desavisado da Netflix, “Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese” pode ser um tanto quanto delicado pelo seu conteúdo fictício e fora de contexto. Pois, ele se trata de um documentário falso que cobre a turnê de 1975 intitulada “Rolling Thunder Revue” e também contém entrevistas falsas e algumas cenas de “Renaldo e Clara”, um filme dirigido pelo próprio Dylan em 1978.

Esse pseudodocumentário inicia com uma mágica em preto e branco de Georges Méliès (“Viagem à Lua”), este que é considerado o pioneiro do cinema. Com isso, Scorsese já quer deixar claro seu total desapego com a realidade e dizer que tudo que se seguirá pelas mais de duas horas deve ser visto com distanciamento. Apenas um entretenimento. E nas palavras do próprio Dylan: “Estou tentando explicar o que foi a Rolling Thunder, mas eu não sei, porque não foi nada. É só uma coisa que aconteceu há 40 anos. Aquilo aconteceu há tanto tempo que eu nem tinha nascido ainda.”

Sem dúvidas, o olhar misterioso de Dylan sempre fez dele o centro das atenções. E nesse caso não seria diferente – desde o início a câmera está à sua procura. A maquiagem branca no rosto, como uma máscara para os shows, é um dos elementos que a narrativa faz questão de abordar. Ela é apresentada como algo mítico até que mais adiante Bob revela que foi inspirada na banda Kiss. Em outra ocasião, Bob diz a Sharon Stone (“O Melhor Presente É O Amor”) que compôs uma música pra ela, para logo depois alguém dizer à Sharon que a música existia há dez anos. Ou seja, enquanto o diretor cria a imagem do mito o cantor vem na sequência para contradizer o que fora dito. Como uma iconoclastia de si mesmo.

Scorsese também parece buscar as motivações por trás das músicas e dedica um bom tempo para mostrar o encontro com o boxeador Hurricane e consequentemente a repercussão da música sobre o esportista. Nesse contexto biográfico, também há espaço para o encontro com a família do índio Ira Hayes, um dos homens esquecidos que fincou a bandeira americana na montanha de Iwo Jima. Se Bob não era performático nos palcos, o mesmo não se pode dizer nos bastidores.

Entre encenações e bizarrices, como ler livro no túmulo de Jack Kerouac, é inegável que o mockumentary resgata imagens únicas e que Scorsese caprichou tanto na restauração delas como no som. É possível ver na edição o olhar afiado do diretor para manter o ritmo sempre adiante e evitar o cansaço. Porém, infelizmente esse filme ficará na sombra de “No Direction Home” por parecer confuso e um apanhado de imagens não aproveitadas. Provavelmente seu maior mérito foi abordar nas entrelinhas, embora curvas, o impacto das músicas de Dylan na cultura americana. Sobretudo, é notório como um diretor renomado como Martin Scorsese fez questão de incluir uma obra tão duvidosa em sua filmografia. Se esse filme tem uma verdade, ela é o amor do diretor pela persona de Bob Dylan.

Jefferson José
@JeffersonJose_M

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