Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 18 de julho de 2019

Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy (Netflix, 2019): fascínio pelo crime

Documentário é uma viagem tortuosa e impactante sobre violência, mistério, falsas aparências e o mórbido encanto da humanidade pela barbárie.

Durante a década de 70, os Estados Unidos vivenciaram o auge de um movimento conhecido como a segunda onda feminista, quando mulheres saíram às ruas para debater questões ligadas à sexualidade, família, mercado de trabalho, direitos reprodutivos, chamando atenção também para a violência doméstica e casos de estupro conjugal. Nesse mesmo período uma série de crimes hediondos praticados – em sua grande maioria – contra mulheres cresceu consideravelmente. Aproveitando-se da liberdade e do direito gradativo com o qual elas foram conquistando sua independência, assassinos disfarçados de bons moços viram ali a chance de saciar os seus desejos mais perversos e elevaram os índices de criminalidade no país. Nenhum deles foi tão abominável como Theodore Robert Cowell, ou simplesmente Ted Bundy, objeto de estudo do doc da NetflixConversando com um Serial Killer: Ted Bundy”, que ao trazer gravações assombrosas, imagens e a repercussão de seus crimes, tenta dissecar a mente doentia de Ted e de outros iguais a ele.

Nojento. Em meio a tantos adjetivos pejorativos que poderiam ser usados para definir a jornada e a personalidade de Ted Bundy, esse é um dos que cai como uma luva. Já “alívio” é a palavra que melhor descreve o sentimento do espectador ao fim desse documentário robusto com quatro episódios repleto de detalhes perturbadores. A partir de depoimentos de pessoas que tiveram o desprazer de fazer parte da história do serial killer, o diretor Joe Berlinger (“Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal”) leva ao público a busca por um olhar apurado da psique de Bundy para mostrar o quão doente era o homem e entender o que pode tê-lo levado a cometer mais de 30 crimes contra mulheres entre os anos de 1974 e 1978. A narrativa parte de uma confissão no temido corredor da morte para o então jovem e pouco experiente jornalista Stephen Michaud que, assim como as outras pessoas da produção, o caracteriza como sendo um homem charmoso, inteligente, bem articulado e de palavras convincentes, ou seja, o tipo de ser humano do qual a sociedade jamais poderia esperar atrocidades.

O roteiro de Berlinger não oferece à audiência respostas fáceis sobre como ou o porquê do personagem principal ter se transformado num monstro asqueroso. No entanto, a partir de uma cronologia eficiente, que transita com fluidez entre as conversas registradas nos anos que antecederam a condenação e os anos nos quais ocorreram os assassinatos, ele nos induz a montar um quebra-cabeça fascinante para que ao final seja possível um julgamento sem dúvidas. Pistas entregues por meio de uma condução magistral do repórter Michaud, que sugeriu a Bundy um relato em terceira pessoa, coloca o protagonista como testemunha de seus próprios atos. Informações de ex-namoradas e amigos alertam para uma sucessão de características que ao fim estão relacionadas à maioria daqueles que já cometeram os mesmos delitos. A paixão pela pornografia atrelada à violência, ao apetite sexual, à solidão, à mentira, à insegurança, à descoberta como filho bastardo e ainda a possíveis abusos físicos e psicológicos vindos da relação com o avô.

Ao mesmo tempo que vai fundo na história na busca por situações que moldaram sua persona non grata, o documentário evidencia com muita sobriedade e profundidade as dificuldades enfrentadas pelas autoridades americanas em capturar o criminoso. Levando em consideração que os homicídios aconteceram numa época em que ainda não existia a internet e os estados por onde ele deixou rastros de sangue não conversavam entre si, o que impunha ainda mais obstáculos, o criador Joe Berlinger promove um justo reconhecimento da polícia envolvida e mostra como foram capazes de superar as adversidades. Dessa forma, confere à produção um tom dramático arrebatador, que ganha mais peso com os depoimentos estarrecedores de Bob Keppel e Kathleen McChesney, detetives do Condado de King, em Washington, que estiveram diretamente comprometidos com os casos e que transmitem em suas falas a emoção e a perplexidade com aquilo que viveram.

Equilibrado, o argumento da narrativa não deixa, contudo, de criticar essas mesmas autoridades por permitirem que Bundy as ludibriasse e escapasse duas vezes, ambas de maneira inteligente e friamente estudadas. Para aqueles que gostam de um documentário bem embasado, “Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy” apresenta um trabalho competente de pesquisa e entrevistas que, aliadas à montagem descomplicada – fundamentada pela justaposição de imagens autoexplicativas – e uma trilha sonora tensa, proporciona uma experiência fascinante e desembaraçada. Agora, se você é uma daqueles pessoas que costumam torcer o nariz para esse gênero, fique tranquilo, pois assim como nos melhores filmes, o documentário surpreende com vários momentos de suspense, drama criminal e uma capacidade invejável de chocar não só pelos crimes. Embora seja possível notar que alguns monólogos são repetitivos, bem como algumas imagens de Ted e outras mais expositivas, ao final são apenas detalhes que afetam em quase nada o desenrolar da narrativa.

A natureza chocante do caso, a violência da depravação e a personalidade de Ted Bundy criaram algo que ninguém poderia ignorar”, assim resumiu Ed Hula, correspondente da PBS Flórida. São quatro episódios viciantes, difíceis de digerir e que expõem a atração natural do ser humano pelo desastre (o sorriso constrangedor de pessoas que conviveram com ele, a cobertura midiática do caso e as comemorações efusivas com a sentença da pena de morte provam isso), ainda que o mesmo cause desconforto. Em suma, é uma minissérie envolvente, triste, sombria e balanceada sobre uma pessoa desequilibrada.

Renato Caliman
@renato_caliman

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