Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 03 de julho de 2019

Calibre (Netflix, 2018): sobre omissão e paternalismo

O thriller aposta em uma narrativa convencional e sem inovações, mas seu mérito está no suspense que cadencia os acontecimentos, tratando de culpa e consequências de estar no lugar errado e na hora errada.

Na maioria dos casos, assistir um filme é se colocar na posição confortável de observador, acompanhando o desenrolar de uma história sem muito envolvimento. Mas há também as obras que, através de uma linguagem intimista, nos coloca dentro da trama, como cúmplices. Alfred Hitchcock (“Psicose”) era genial nesse quesito. O promissor Matt Palmer (“The Gas Man”) também busca esse estilo, e dirige Calibre com muito domínio da tensão. Seu objetivo não é impactar com reviravoltas e sustos gratuitos; ele trabalha sutilmente as conexões entre pais e filhos para que estejamos envolvidos emocionalmente com os personagens em um homicídio. E ele atinge esse objetivo com maestria. 

Dois amigos de infância, Vaughn (Jack Lowden, de “Duas Rainhas”) e Marcus (Martin McCann, de “O Sobrevivente”) decidem passar alguns dias caçando em uma área remota da Escócia às vésperas da esposa de Vaughn dar à luz. Aliás, o filme abre com o casal falando sobre a criança. Ao chegarem no vilarejo, Marcus já demonstra atitudes irresponsáveis e usa drogas com uma jovem local sem o conhecimento do amigo. Não demora para que os moradores demonstrem repúdio aos visitantes, o que revela que dentro da comunidade há união e um sistema próprio de leis e organização.

Vaughn tem o temperamento mais amigável e menos experiência com armas e caça. Já na mata, logo de manhã, ele mira para atirar em um alce mas o animal se move no momento do disparo e o projétil acaba tendo outro alvo fatal: uma criança, que estava na mata caçando com o pai. E para piorar a situação, no calor do momento, o ímpeto de Marcus o leva a matar o pai do garoto para defender o amigo. É ali no silêncio da mata que o maior erro é cometido: a omissão. Com medo de irem presos sob acusação de homicídio, eles decidem enterrar os corpos e voltar para a vila como se tivessem caçado por outros lados.

Quando a notícia do desaparecimento do pai e do filho vem à tona, descobrimos que eles são parentes de Logan (Tony Curran, de “Legítimo Rei”), um dos chefes locais. Todos se conhecem porque o filho de Logan já havia brigado com Marcus no bar por causa das drogas com a garota. Desconfiados, os moradores locais fazem a dupla ajudar na busca dos corpos. Vaughn é coagido pelo amigo a guardar o segredo, e mesmo com o peso da culpa eles seguem com o álibi e tentando deixar o vilarejo. Toda essa cadeia de acontecimentos é apresentada ainda no primeiro ato do filme, e os acontecimentos seguintes são as consequências e a angústia da situação em que se meteram. 

A eficiência dessa obra britânica está na linguagem do desenvolvimento, pois a perspectiva em que o espectador é colocado o torna cúmplice do crime, colocando nossa índole em dúvida a todo momento. A produção é econômica e quase toda ambientada entre às árvores e em alguns ambientes da vila, mas o que torna o suspense efetivo são as ótimas interpretações dos atores. Embora a dupla de protagonistas seja competente em seus papéis de amigo bom e amigo mau, é o coadjuvante Tony Curran que rouba a atenção com seu Logan ameaçador e protetor.

É fácil um suspense cair nos gatilhos do gênero e abusar da fotografia para espantar. Contudo, “Calibre” segue por um caminho honesto. Mesmo sendo previsível, o longa cria uma atmosfera muito intensa dentro das matas bucólicas e faz bons questionamentos sobre o limite da amizade diante da culpa. E nas entrelinhas o diretor quer falar sobre paternalismo, sobre o dever dos pais em proteger os filhos. A obra é uma excelente surpresa e deveria ser um exemplo a seguir pela Netflix, pois muitas vezes menos é mais. E como disse Hitchcock: “Em filmes, assassinatos são sempre muito limpos. Eu vou mostrar como é difícil e confuso matar um homem”.

Jefferson José
@JeffersonJose_M

Compartilhe