Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 28 de junho de 2019

Annabelle 3 – De Volta Para Casa (2019): terror para a família

Novo capítulo para a famosa e temida boneca do universo de "Invocação do Mal" traz divertidas novidades em roteiro inteligente para uma fórmula já consolidada.

A demoníaca Annabelle já tem o status de estrela. Ela apareceu pela primeira vez nos cinemas em 2013 em “Invocação do Mal”, obra de James Wan que marca o início deste “universo cinematográfico” e de onde a boneca ganhou seus próprios spin offs. Desde então a pequena já fez até participações em blockbusters como “Aquaman” e “Shazam!”. Com mais um filme na conta, “Annabelle 3: De Volta Para Casa” tem por desafio evitar o desgaste da personagem como antagonista assustadora e continuar atraindo espectadores. O roteirista Gary Dauberman (“It: A Coisa”) toma para si as rédeas da sequência, estreia na direção dando um tom diferente à franquia e consegue um respiro gratificante para a história da sorridente vilã.

Os investigadores paranormais Ed (Patrick Wilson, “Sobrenatural”) e Lorraine Warren (Vera Farmiga, “Amor Sem Escalas”) servem como anfitriões ilustres para introduzir a trama. Ela começa imediatamente após o prólogo de “Invocação do Mal”, quando o casal traz a boneca amaldiçoada para casa “por segurança”. Eles a trancam numa caixa especial dentro de um quarto, onde já guardam uma enorme coleção de artefatos sinistros coletados ao longo da carreira confrontando espíritos. O recado é dado: Annabelle é o mais perigoso dos objetos porque tem o poder de atrair entidades do mal como um grande farol. Os conflitos do filme acontecem um ano depois, quando o casal deixa sua filha de dez anos, Judy (Mckenna Grace, “Capitã Marvel”), sob os cuidados da babá Mary Ellen (Madison Iseman, “Jumanji: Bem-vindo à Selva”) e, é claro, a boneca dá um jeito de escapar.

Diferente do que se pode assumir, Annabelle não é um boneco possuído como o Chucky de “Brinquedo Assassino”, que sai matando por perversidade. Ela funciona como um canal para os verdadeiros perigos do além. Estes sim chegam sedentos por possuir corpos humanos e roubar almas. Quando uma amiga de Mary Ellen, Daniela (Katie Sarife, da série “Youth & Consequences”), consegue entrar no “depósito” dos Warrens, sem querer ela acaba libertando não só a boneca e a entidade mal-intencionada que chega através dela, mas vários outros seres horrorizantes prontos para tocar o terror na casa. As meninas têm então que lidar com um lobisomem fantasma, uma noiva assassina, amiguinhos de Annabelle e mais um punhado de criaturas oriundas dos piores pesadelos, quase como “Uma Noite no Museu” só que do mal.

A decisão de preencher o longa com outros vilões tão arrepiantes quanto a titular ajuda a dar uma dose de frescor, um respiro à franquia, mas não como fato isolado. Gary Dauberman modifica o tom dos anteriores ao construir um clima mais leve e jovial, lançando mão inclusive de mais momentos cômicos para alívio e evitando figuras chocantes. O resultado é mais próximo do terror para crianças, como de “Goosebumps” ou “Os Caça-Fantasmas”, do que o horror pesado comum em filmes de exorcismo. A ambientação nos anos 70 e a atuação brincalhona do elenco permite até comparar “Annabelle 3: De Volta Para Casa” a um divertido episódio de “Scooby-Doo” se este fosse feito para assustar crianças.

Falando em susto, a obra entende que o abuso dos jump scares neste gênero de filmes é tanto que a audiência já se prepara para eles. Dauberman usa essa expectativa para criar uma atmosfera de tensão no lugar do espanto barato, elevando a qualidade do terror. O diretor é consciente dos clichês e buscou oportunidades para pervertê-los com um roteiro mais inteligente que as fórmulas. Quando o espectador acha que já sabe o que vai acontecer numa cena, algo não tão esperado acontece e mantém o suspense por mais tempo. O arrepio nasce do jogo de câmera e dos elementos colocados no quadro em momentos calculados. Além de easter eggs da própria franquia, Gary também planta referências a clássicos de Tobe Hooper e contos de Stephen King para enriquecer o longa.

Merecem destaque os diversos e divertidos setups e payoffs que o roteiro arma ao introduzir detalhes a princípio insignificantes, mas que possuem importância adiante na trama. Essa é uma técnica geralmente difícil de executar e o que marca em “Annabelle 3” é a quantidade de vezes que ela é usada. Além disso, a edição de som como elemento narrativo é memorável, desde a atenuação das portas e paredes até a quase imperceptível camada de frequências baixas, como um zumbido insistente, que entrega a presença dos espíritos. Repare também como o barulho que sai de uma armadura samurai em certo momento é capaz de criar praticamente um segundo filme na imaginação dos espectadores.

Por fim, são as motivações humanas e temas bastante identificáveis como bullying, luto e cafonice adolescente que preenchem a malha emocional do longa, especialmente graças às atuações da surpreendente Mckenna Grace e de Katie Sarife. Suas Judy e Daniela trazem uma profundidade inesperada para o gênero. Por outro lado, os personagens sobrenaturais fazem o que querem, na hora que querem, e o roteiro não se importa em explicar nada que dê sentido às assombrações a não ser atormentar (coordenadamente) os vivos. Como uma ótima conclusão, a voz de Lorraine Warren nos lembra metaforicamente que todo o mal presente nos filmes de terror serve para valorizar o bem que existe na nossa vida real.

Por ousar construir um clima diferente trazendo novos elementos para a franquia, “Annabelle 3: De Volta Para Casa” surpreende as expectativas com criatividade e ótima direção. Ao brincar com outros aterrorizantes artefatos da coleção dos Warrens, o roteiro inteligentemente planta oportunidades para novos spin offs, ao mesmo tempo que oferece uma pequena folga à boneca evitando o cansaço do público. Se Annabelle não assusta tanto quanto filmes mais sérios do chamado “pós-terror” (como “Hereditário”, “A Bruxa” e “O Babadook”) não é por falta de mérito, uma vez que o tom mais leve desta sequência está mais próximo da diversão em família que do desespero existencial.

William Sousa
@williamsousa

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