Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 29 de junho de 2019

Divino Amor (2019): Brasil futurista e conservador

Crítico, ácido, sensual e criativo. Novo filme de Gabriel Mascaro apresenta um Brasil em um futuro ditado por evangélicos e por uma sociedade tecnológica e conservadora.

Durante muito tempo o cinema brasileiro não deu o devido espaço ao dito “cinema de gênero” dos filmes de terror, suspense e ficção científica, por exemplo, que usam uma base de preceitos e técnicas para tratar de diversos temas. Felizmente, isso vem caindo por terra com ótimos exemplos nessa década como o terror “As Boas Maneiras”, o suspense “O Lobo Atrás da Porta”, e as ficções científicas “O Homem do Futuro”, “Branco Sai, Preto Fica” e agora com “Divino Amor”.

No longa, o Brasil de 2027 é apresentado pela ótica de Joana, interpretada por Dira Paes (“Redemoinho“) em uma performance deslumbrante que mostra a entrega e versatilidade da atriz. Ela é uma funcionária de cartório que, influenciada por sua fé religiosa, utiliza seu poder público para colocar em prática uma visão particular do que é certo e moral nos processos de divórcio do seu setor. Ela é casada com o florista de velórios Danilo, vivido pelo excelente Julio Machado (“Entre Irmãs”), com quem frequenta uma igreja evangélica que em muito se assemelha àquelas mais famosas, seja pelo logotipo, seja pelos bordões ditos constantemente. O casal sonha em ter filhos e luta fervorosamente para que isto aconteça. 

O futuro de “Divino Amor” mostra que o carnaval perdeu o posto de maior festa do país para a “festa do Amor Supremo” em um universo embebido em luz neon e cores lisas, mas que por vezes carrega um tom sombrio. Ao mesmo tempo em que remete brevemente a clássicos como “Blade Runner”, a obra também traz à lembrança o visual retrofuturista de “Ela” e é muito rico em simbologia. O ambiente da igreja da Mestra Dalva (Teca Pereira, da série “3%”) é de um constante vermelho ou rosa fortes e externam o amor dos fiéis em diversos níveis. Rituais religiosos são apresentados com altas doses de erotismo e são surreais e críveis ao mesmo tempo.

Os fiéis parecem ser um público diminuto, mas a influência de um conservadorismo advindo de partes radicais dos evangélicos, do poder público e do poder econômico é perceptível na sociedade como um todo. A evolução da tecnologia se mostra presente nesse mesmo tom. Ao entrar em estabelecimentos as pessoas são identificadas com nome e estado civil numa tela, em uma sutil demonstração de invasão de privacidade, na qual o indivíduo é categorizado como um produto em uma prateleira do supermercado mais próximo.

A criatividade do longa dá espaço para até mesmo uma espécie de confessionário drive thru no qual o pastor, vivido por Emílio de Mello (da série “Psi”), demonstra um amanhã possível e questionável. Emílio entrega uma atuação típica de diversos líderes religiosos, acolhedora, conciliadora, mas ao mesmo tempo dá espaço para o humor e para processos práticos e mecânicos dignos da linha de produção de uma fábrica de automóveis.

Novamente em comparação com “Blade Runner” (a versão original, lançada em 1982), há também uma narração em off em “Divino Amor”, com um texto que tira o poder de interpretação do público e diminui a força de algumas imagens poderosas que poderiam falar por si só. A voz infantil e levemente robotizada, que aparece em diversos momentos, fornece explicações de maneira professoral e novelesca que pouco contribuem para a trama como um todo.

Por fim, certamente há quem irá acreditar que a visão do diretor Gabriel Mascaro (“Boi Neon”) daquilo que serão os próximos anos é algo a ser desejado e aí que reside um dos vários méritos do filme. O que é distopia para uns, pode ser a utopia de outros. Mas o texto, assinado por Rachel Daisy Ellis (“Ventos de Agosto”), Lucas Paraizo (“Aos Teus Olhos”), o estreante Esdras Bezerra e o próprio Gabriel Mascaro, deixa clara a crítica ácida ao fanatismo religioso, a hipocrisia de muitos representantes de igrejas e a um conservadorismo institucionalizado. É cinema brasileiro com técnica, assinatura e alma.

Hiago Leal
@rapadura

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