Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sábado, 06 de julho de 2019

Ghost in the Shell – O Fantasma do Futuro (1995): marco da filosofia cyberpunk [CLÁSSICO]

Clássico anime de 1995 oferece discussões atemporais sobre a humanidade e influenciou obras gigantescas da cultura pop num universo cyberpunk de encher os olhos.

“Ghost in the Shell” é um mangá de Shirow Masamune publicado entre 1989 e 1991 no Japão e lançado aqui no Brasil pela editora JBC no final de 2016 em edição de luxo. A obra é uma ficção científica cyberpunk que revolucionou a cultura pop em geral. Em 1995, um longa metragem animado foi lançado, chegando em terras tupiniquins com o título “O Fantasma do Futuro”.

No ano de 2029, o mundo é um lugar ultrainformatizado, tecnológico e automatizado. É comum que humanos tenham implantes cibernéticos, desde membros a órgãos vitais. É possível também conectar seu cérebro a uma rede que é basicamente a Internet, mas maior e com mais possibilidades. No longa, somos apresentados à protagonista Major Motoko Kusanagi (Atsuko Tanaka, “Batman Ninja”), que trabalha para uma espécie de força policial e é a única que possui todo o corpo robótico, com exceção do cérebro.

No mangá, há muito mais tramas de investigações, conspirações e política internacional do que no anime, que segue uma única porém complexa história. Entretanto, em ambas as obras, tudo é pano de fundo para a real discussão: o lugar de Kusanagi no mundo. Como ela é a única de seu tipo, não se sente parte da sociedade. O longa discorre sobre o que é ser um indivíduo, o que faz alguém ser reconhecido como um ser social. A estrutura física da protagonista a faz se sentir perdida entre humanidade e tecnologia, desconectada dos outros com quem convive. É interessante notar como ela raramente pisca, o que cria uma sensação de estranheza no espectador, que sente o desconforto que a própria tem sobre si mesma. Narrativa visual de primeira.

Essa discussão é realçada quando aparece o antagonista Puppet Master (Iemasa Kayumi, “Lupin III vs Detetive Conan: O Filme”) , um ser gerado na rede, sem nenhuma parte humana. Ele se reconhece como um indivíduo, mas o mundo a sua volta não. Ele hackeia outras pessoas pela rede que todos usam para implantar e recriar memórias, e é por meio de suas ações que o filme aprofunda suas indagações sobre o que significa ser humano. O personagem indaga se a resposta está na mortalidade, mas tem grande fé que está, na verdade, na capacidade de reprodução. Podendo criar cópias de si mesmo, mas as chamando de imitações baratas, ele crê que reprodução é o que gera verdadeiras criações. Isso não quer dizer que a opinião do longa é esta, apenas a do Puppet Master, ilustrando como a obra constantemente convida o espectador a filosofar.

O diretor Mamoru Oshii (“The Sky Crawlers – Eternamente”) trouxe soluções visuais incríveis para trazer o mundo de Masamune à vida. O visual e os temas inspiraram a ficção científica dali para frente pesadamente, como em “Matrix”. Oshii enviou fotógrafos para capturar imagens de locações do mundo real que pudessem servir de inspiração para a megalópole cyberpunk do longa, as quais o diretor de arte Hiromasa Ogura (“FLCL”) pôs em uso com maestria. Com fotos de construções massivas capturadas em contra-plongée (de baixo para cima), que davam uma ideia ainda melhor da enormidade das mesmas, Ogura trouxe essa ideias para o anime, que também conta com a inspiração dos mercados superlotados e cheios de neon de Hong Kong.

A animação em si, misturando imagens de computador com cell shading, se sustenta muito bem mesmo após décadas, com uma fluidez de movimentos que convence e ilustra o investimento feito na obra. O cuidado com os cenários resulta em paisagens urbanas embasbacantes pinceladas com cenas de ação de ótimo ritmo. Ao decorar tudo com a marcante trilha sonora de Kenji Kawai (“Detetive Dee: Os Quatro Reis Celestiais”), que mistura cantos tradicionais do folclore japonês com elementos eletrônicos, o filme consegue uma mescla singular de imersão, emoção e estranheza.

Oshii também soube representar os questionamentos de Kusanagi muito bem ao deixar as cenas correrem sem pressa e permitir que a personagem contemple o mundo à sua volta, assim ilustrando suas dúvidas interiores. A protagonista também procura situações para se testar, como na cena em que está na água, onde pode afundar. Ao ser indagada do porquê de se arriscar, ela diz que é onde sente medo e ansiedade, onde ela toca em sentimentos comuns a humanos, mostrando assim sua eterna dúvida sobre si mesma. Outro elemento de narrativa visual do filme são momentos em que ela se despe sem sentir vergonha, pois seu corpo não é orgânico e ela não se sente exposta. O contraste desse fato com seu parceiro Batou (Akio Otsuka, “Os Sete Pecados Capitais: Prisioneiros dos Céus”), que fica constrangido e logo lhe oferece algum tipo de coberta, enriquece as discussões propostas. Outro ingrediente é o personagem Togusa (Kouichi Yamadera, “Dragon Ball Super: Broly”) que se recusa a ter implantes cibernéticos sem ficar pregando sua visão de mundo. O longa levanta inúmeras questões e basicamente faz um pequeno brainstorm de possíveis respostas, mas sem defender nenhuma delas. São esses tipos de questionamentos que compelem a humanidade a buscar respostas e, enfim, evoluir. Ter o Puppet Master como principal antagonista (ao contrário do mangá, quando ele só aparece bem mais tarde) realçou a filosofia proposta com diálogos precisos que levam à abstrata e esperançosa conclusão do filme com ótima coesão.

Uma animação de alta qualidade visual e narrativa, “Ghost in the Shell – O Fantasma do Futuro” surpreende pela sua densidade num filme de pouco menos de uma hora e meia de duração. Sugerindo profundos debates sobre o que faz de um indivíduo um ser humano, é uma obra que oferece o que a ficção científica tem de melhor.

Bruno Passos
@passosnerds

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