Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 21 de junho de 2019

A Espiã Vermelha (2018): uma heroína incompreendida… no mau sentido

Drama britânico sobre uma espiã descoberta já no fim de sua vida reconta suas origens em busca de explicações. Apesar de boa ambientação e ótimas atuações, a obra não consegue construir envolvimento do público.

O pôster de “A Espiã Vermelha” destaca Dame Judi Dench (“007 – Operação Skyfall”) como a senhora Joan Stanley, personagem inspirada num caso verídico de espionagem internacional. A Joan da vida real se chamava Melita Norwood e os tabloides a batizaram de “vovó espiã” quando, já em idade avançada, sua história foi descoberta. Este filme de Trevor Nunn (“Noite de Reis”), diretor mais conhecido pelo trabalho no teatro britânico, é uma adaptação do livro homônimo de Jennie Rooney que dramatiza as origens destes fatos.

A trama se inicia com a inesperada prisão de Joan em 1999, só que o núcleo da narrativa começa logo antes do início da Segunda Guerra Mundial, quando a jovem Joan (Sophie Cookson, “Kingsman: Serviço Secreto”) era somente uma caloura do curso de Ciências Naturais da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. O interrogatório da senhora Joan e suas conversas com o filho Nick (Ben Miles, “Ninja Assassino”) são as deixas para os saltos temporais entre as duas fases da vida da protagonista. O que se vê no entanto é uma desapontadora redundância entre atuação, diálogos e direção de arte.

A manipuladora Sonya (Tereza Srbova, “360”) entra na vida da inocente estudante literalmente pela janela. Não há espaço algum para ambiguidades nem sutilezas com essa personagem. Ela é mais velha, órfã, fuma, não esconde sua origem russa e aparece sempre com alguma peça brilhantemente vermelha no figurino. Um singelo convite ao “cinema” pela nova amiga leva Joan para uma reunião de jovens comunistas, onde ela conhece Leo (Tom Hughes, “Reviver”), um eloquente ativista de charme gélido que conquista a atenção da protagonista apesar do seu distanciamento emocional. O que para Joan é o início um romance, para o espectador é praticamente uma armadilha em andamento, pois sabemos que este momento da história foi seminal para os conflitos de interesses e influências entre os soviéticos e o ocidente que culminaram na Guerra Fria.

A posição da mulher na sociedade daquela época ainda era considerada bastante inferior em relação a do homem. Essa diferença é um dos temas recorrentes nas pinceladas do roteiro e também é a irônica justificativa para Joan ter passado tanto tempo sem ser descoberta. Sob o mesmo aspecto, é verdade que um longa centrado numa mulher enfraquece o discurso feminista quando a coloca à mercê de homens responsáveis por influenciar suas decisões. A todo momento as motivações de Joan parecem ser direcionadas pelos seus relacionamentos, a princípio com Leo e depois também com seu professor Max (Stephen Campbell Moore, “O Retorno de Johnny English”). Porém, numa análise mais cuidadosa, é natural que absorvemos os valores das pessoas que mais admiramos independente do tipo de relação que temos com elas. Além disso, desde o início a personagem de Joan é apresentada como alguém muito sugestionável, como quando ela prova o casaco de pele que já era dela após um simples elogio de Sonya. E, ao contrário dos clichês machistas, ela tem domínio dos seus próprios impulsos sexuais e não se descontrola ao sofrer com seus frustrados ideais românticos. Ao lembrar desses relacionamentos, a idosa Joan entrega uma mistura de vergonha e autopiedade.

A obra inteira é enfraquecida de fato por esfregar todos os subtextos na cara do público. A atuação do elenco é delicada o suficiente para transparecer todas as complexas emoções sem precisar se apoiar no diálogo, mas infelizmente o roteiro não confia na sensibilidade do espectador e explica todos os conflitos através dos diálogos. Apesar dos cenários e do equilíbrio de cores permitirem uma imersão prazerosa nos dois momentos diferentes da história de Joan, detalhes da direção de arte são utilizados para redizer o óbvio. Desde o andrógino chapéu Fedora para caracterizar a “espiã” até o uso do azul e do vermelho no figurino para pontuar as opostas posições políticas. O pior dos exemplos acontece quando Nick confronta a mãe sobre o envolvimento dela nas acusações de conluio com os comunistas – nas mãos da senhora está uma caneca estampada com a foto de Che Guevara.

Mesmo validando a construção de caráter da protagonista, a defesa de Joan em relação às acusações de fraqueza por ter sido uma peã para os russos é que ela teria agido a favor da humanidade, com um senso de justiça maior que o patriotismo, e não por causa de uma sequência de más escolhas passionais. Tal justificativa delirante poderia ser razoavelmente humana mediante a pressão de um interrogatório humilhante, mas o próprio filme tenta atribuir o status de heroica à atitude da espiã, que teria ajudado inimigos com a finalidade nobre de salvar o mundo inteiro da destruição em massa. Apesar de impopular, essa conclusão é até justificada pela teoria dos jogos (campo de estudo desenvolvido justamente durante a Guerra Fria), mas é incongruente com a trajetória da personagem no longa.

Infelizmente, a fragilidade exposta sobre a trama supera os aspectos positivos da atuação e da direção. É difícil sentir compaixão ou medo pela protagonista com a ausência de um perigo real ou um conflito que permita identificação pelo público além de suas frustrações amorosas. Não conseguimos nem torcer pra que ela se livre do elo com os comunistas porque já sabemos que sua punição por isso chega no futuro. Ao buscar compreensão, nem Dame Judi Dench salva o texto que tem que sintetizar didaticamente as motivações da Joan do passado e ainda tentar colocá-la numa posição de heroína. “A Espiã Vermelha” apresenta um visual agradável, uma atmosfera interessante, tem nas mãos bons atores tentando defender seus personagens, mas com uma história que desanda emocionalmente não há filme que se sustente.

William Sousa
@williamsousa

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