Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 17 de junho de 2019

O Abrigo (2011): enigmático e marcante

Michael Shannon com uma atuação poderosa transforma uma trama modesta em um intenso distúrbio obsessivo. É um daqueles raros casos que o protagonista faz das perguntas suas ferramentas para conduzir a atenção.

“O Abrigo” é o segundo filme da filmografia de Jeff Nichols (“Loving”) e provavelmente um dos principais a consagrar Michael Shannon (“12 Heróis”) como um artista singular. O ator, embora tenha um currículo extenso, sempre caminhou à margem de grandes produções optando por coadjuvantes de dramas ou ficções científicas. Seu jeito desengonçado devido a sua grande altura e seu semblante intenso sempre o relacionou com personagens problemáticos ou vilões. E aqui fica claro a presença de tela de Shannon e sua habilidade para compor um personagem dúbio que carrega magistralmente o protagonismo.   

Curtis LaForche (Shannon) mora com a esposa Samantha (Jessica Chastain, “X-Men: Fênix Negra”) e sua filha (a iniciante Tova Stewart) de seis anos numa pequena cidade de Ohio. A família vive uma vida simples e a criança possui uma deficiência auditiva, então o casal trabalha com afinco para suprir as necessidades especiais da filha e manter as despesas da casa. Curtis trabalha numa empresa de perfuração e Samantha vende artesanatos na feira local. Mesmo em meio às dificuldades, a princípio eles são felizes, mas a rotina começa a mudar quando Curtis passa a ter pesadelos com uma tempestade apocalíptica e começa a ficar obsessivo em se preparar para ela.

Ele se dá conta de que a questão é mais grave do que se imagina no dia em que ele acorda molhado pela sua própria urina. Desse momento em diante ele tenta buscar alguma explicação para seus terríveis sonhos e o maior agravante se torna a omissão com sua esposa. Curtis teme que ele tenha problemas psicológicos como a mãe e seja obrigado a um tratamento ou até mesmo uma internação. É nesse aspecto que o roteiro é muito bem polido e fornece a Shannon o material para brilhar. Embora os pesadelos do protagonista comecem a soar como visões pelo alto realismo que se dão, é com a questão da esquizofrenia da mãe que se cria todo o mistério no roteiro.

O filme trabalha sutilmente as inserções dos fenômenos da natureza com o possível transtorno mental de Curtis. Essa dúvida latente o faz começar uma reforma no abrigo no quintal para ampliá-lo, e isso desperta a preocupação da esposa e a desconfiança dos amigos e colegas de trabalho. Ele começa a exibir comportamentos bipolares e a se comportar como um doente obsessivo. Primeiro faz um empréstimo escondido da esposa e em seguida compromete seu trabalho ao pedir ao amigo que o ajude a cavar com as máquinas da empresa sem autorização. Curtis começa a estocar alimentos e passar muito tempo longe da família.

É impressionante como a direção mantém o espectador curioso até o último ato a fim de desvendar se estamos diante de fenômenos apocalípticos ou de um insano sem controle. A narrativa mescla com muita competência os dois elementos, pois por vezes acreditamos que Curtis está realmente profetizando. O personagem ganha mais credibilidade quando se abre com a esposa, e ela decide ajudá-lo a encarar sua mente ao invés de entregá-lo aos psicoterapeutas. É literalmente na última tomada do filme que toda a carga dramática envolvida se completa de uma maneira visualmente linda e catártica. Mesmo diante do trágico a resolução é reconfortante. Isso é o poder do cinema em total harmonia com os sentimentos canalizados por um ator estupendo.  

Jefferson José
@JeffersonJose_M

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