Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 16 de junho de 2019

I Am Mother (Netflix, 2019): os questionamentos da ficção científica

Enervante, longa com poucos personagens levanta questões interessantes de filosofia, moral e ética, mas escorrega ao tentar debater maternidade.

A boa ficção científica oferece cenários imaginários para, no fim das contas, promover uma análise sobre moral e ética na humanidade. Há obras que tratam disso com louvor e outras que se dedicam apenas aos efeitos especiais e logo são esquecidas. “I Am Mother”, longa da Netflix sobre a possível complexidade psicológica de robôs e nossa relação com eles é um exemplo do que o gênero pode entregar de bom.

O título significa “Eu Sou Mãe”, em tradução livre, e a personagem-título é um robô humanoide com inteligência artificial que parece ter sido criado por humanos para auxiliar a nossa raça a renascer após um evento que causou a extinção da vida na Terra. Este robô habita um bunker tecnológico com milhares de embriões humanos e começa o filme colocando um deles para se desenvolver num útero artificial, numa montagem de aparente passagem de tempo que pega o espectador de surpresa mais para frente. Mãe cuida de uma bebê humana até a idade adulta.

A construção do robô como personagem funciona devido a um conjunto de fatores. O visual colabora, tendo partes mais macias para segurar um bebê, um olho único que causa calafrios com duas pequenas esferas luminosas em seu rosto que se mexem em tentativas de simular sorrisos e uma movimentação aparentemente sutil, mas que passa a mesma sensação de ameaça que o T-1000 de “O Exterminador do Futuro 2” quando corre. O CGI ficou à cargo da empresa Weta, que mais uma vez mostra sua competência ao entregar um ser que parece palpável e real e cuja interação com a humana convence. O ator Luke Hawker (“Krampus – O Terror do Natal”) fez a captura de movimentos e a voz de Rose Byrne (“De Repente uma Família”) entrega uma mistura enervante de carinho e frieza.

A humana, chamada apenas de Filha, é interpretada por Clara Rugaard-Larsen (“Espírito Jovem”), que equilibra bem a relação de absoluto carinho por Mãe com seus sentimentos de dúvida quando uma outra humana (a ótima Hilary Swank, “Logan Lucky – Roubo em Família”) aparece de surpresa no bunker. É a partir da introdução desta personagem sem nome que o filme engata a marcha e embarca de vez nas discussões que quer propor.

Infelizmente, o longa não parece achar o nível certo de profundidade que quer chegar para discutir a rica premissa moral que a situação oferece. Se funciona no nível de levar Filha a questionar seu mundo numa interessante alusão ao mito da caverna de Platão, falha bastante em tentar introduzir a nova personagem como outra figura materna e no conflito gerado a partir disso. Filha parece dividida mais pelo fato de ver outro ser humano do que em enxergar uma mãe na recém-chegada.

O roteiro é misterioso o bastante para manter a tensão no espectador. Ao chegar a seu fim, se oferece boas respostas, mas também apresenta fatos que tornam outros sem sentido. Ao introduzir a personagem de Swank e colocando-a frente a frente com Mãe dizendo coisas dúbias que confundem Filha, é inevitável não sentir a apreensão de uma das protagonistas, mas um plot twist (dentre os vários) do filme contradiz as ações da outra e o longa acaba tendo um roteiro com sérios equívocos.

Mesmo assim, “I Am Mother” levanta questões intrigantes e filosóficas que boas obras de ficção científica trazem. Se um ser criado por humanos tem uma programação de sentimentos que emulam com sucesso os de qualquer pessoa, eles são falsos ou válidos? E se são válidos, eles são merecedores de direitos? É um longa que prende o espectador pela tensão e vai permear os pensamentos por bastante tempo após o fim da sessão – o que é sempre um elogio para qualquer filme do gênero.

Bruno Passos
@passosnerds

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