Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 07 de junho de 2019

3% (Netflix, 3ª Temporada): série dona dos próprios méritos [SÉRIE]

Ainda que apresente certas inconstâncias, a primeira série brasileira original da Netflix ainda é capaz de agradar, especialmente ao nicho que já aprendeu a conviver com seus defeitos.

Nada como a persistência na busca pela perfeição. “3%”, primeira série brasileira original da Netflix, consegue chegar à sua terceira temporada apesar de tantas críticas e desconfiança advindas em grande parte pelos próprios espectadores tupiniquins. Apesar dos constantes aperfeiçoamentos, provenientes de um amadurecimento de toda a equipe por trás da obra, a produção ainda segue num ritmo relativamente lento para atingir a excelência. Mesmo assim, não há como rejeitar seus méritos.

Nesta terceira temporada, continuamos presenciando a disputa pesada entre o Maralto e o Continente, só que, agora, dando continuidade ao final da temporada anterior, temos um novo local, construído como uma alternativa aos dois anteriores: a Concha. Idealizada por Fernando (Michel Gomes) – cuja morte foi revelada ainda nos trailers -, e Michele (Bianca Comparato), o lugar promete ser a semente de justiça, igualdade e esperança que o Continente precisa para prosperar.

A Concha é um projeto de lugar que apresente a grande quantidade de recursos e tecnologia do Maralto, mas que esteja disponível para todos os habitantes do Continente que quiserem estar lá. Como dito pela própria Michele, é a realização de um lugar utópico, onde qualquer um tem oportunidade de trabalhar para ajudar no desenvolvimento de lá, e todos são alimentados igualmente, dispensando até a necessidade de dinheiro. Porém, tudo muda quando uma tempestade de areia inesperada e uma falha “suspeita” no mecanismo do coletor de água atingem a Concha, ocasionando a destruição de grande parte das tecnologias e a necessidade de racionamento de comida.

É impossível negar o estilo de narrativa formulaico que “3%” adota, especialmente por ser um produto do meio pós-apocalíptico que já rendeu tantos materiais (de qualidade ou não) para servir como referência. Contudo, os produtores da série ainda se mostram capazes de inserir elementos na trama que evitem a repetição de ideias ou o cansaço do espectador. E aqui a Concha se mostra exatamente com o objetivo de possibilitar o reaproveitamento do que mais funcionava na primeira temporada: o Processo. Para que a Concha sobreviva, é preciso reduzir a população de lá para 10% do total. Dada a natureza da série e por tudo que já foi apresentado antes, fica evidente o que acontecerá a seguir. Mas dessa vez, o procedimento de escolha de quem fica e que sai é denominado Seleção, nome escolhido não só como uma diferenciação, mas como forma de demonstrar que, diferente do Processo para o Maralto, aqui teremos uma triagem justa.

Essa decisão tem dois lados evidentes. Enquanto as resoluções de provas são entretenimento puro e abrem espaço para reviravoltas (um dos maiores méritos da primeira temporada), agora temos um descaso muito maior com o restante da mitologia de “3%”, então tudo aquilo que vinha sendo expandido na segunda temporada e prometia ainda mais nesta terceira, acaba sendo muito limitado ao que está acontecendo dentro da Concha e, no máximo, aos ambientes onde a Comandante Marcela (Laila Garin) domina. Então pouquíssimo do Maralto é mostrado, e o Continente praticamente inexiste, sobrando apenas algumas pinceladas de como as pessoas reagiram à criação da Concha, mas não passa disso. Ao menos nos últimos episódios essa situação melhora, criando um gancho para uma quarta temporada grandiosa e que deve finalmente se desprender dos materiais que a série tanto usa de referência.

Um ponto positivo é o desenvolvimento dos núcleos dos próprios personagens, algo muito bem explorado na temporada anterior e que prossegue aqui. Temos detalhes e flashbacks de Elisa (Thais Lago) e Rafael (Rodolfo Valente), ambos agora presentes na Concha, e Rafael bastante sem rumo depois dos acontecimentos da temporada anterior; descobrimos mais sobre Glória (Cynthia Senek), que lutou para o Processo 105 acontecer mas agora está como braço direito de Michele na Concha; e ficamos sabendo o que aconteceu com Marco (Rafael Lozano), que também buscar uma segunda chance em um lugar melhor ao lado do filho pequeno.

Em compensação, alguns quesitos, por mais que seja possível sentir uma melhoria, ainda ficam abaixo da linha do agradável. Então há novamente o incômodo das atuações engessadas, com diálogos travados e expressões e palavrões soando bem forçados na boca dos personagens, coisa que perdura desde os primeiros episódios e que deve afastar quem não já se acostumou com esse obstáculo. E também os efeitos visuais, que mesmo mostrando uma crescente melhora – e sendo ainda mais exigidos nesta temporada -, ainda deixam a desejar, especialmente com o robô Jardrone, com algumas cenas abomináveis quando aparece.

No fim das contas, “3%” é um produto que tem seu público separado em dois espectros. O que se interessa mais pelo entretenimento das provas inteligentes que o Processo sempre mostrou deve gostar bastante desta terceira temporada, que funciona como uma espécie de volta às origens. Porém, o que prefere mais todas as discussões sociais, do Trio Fundador, da desigualdade, das dissidências dentro da própria Causa e também da cúpula do Maralto, toda a questão política da coisa, aí pode acabar se decepcionando um pouco. Ao menos esse quesito evolui nos episódios finais, deixando no ar uma promessa que deve elevar a expectativa de todos. Por enquanto, o que fica é mais uma sensação de que novamente o potencial da obra ainda não foi utilizado ao máximo.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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