Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 10 de junho de 2019

1994 (Netflix, 1ª Temporada): para que tudo mude, tudo deve permanecer igual [SÉRIE]

Minissérie mexicana da Netflix reconta um dos episódios mais dramáticos da histórica política daquele país que, com toques surreais, parece saído de uma trama de novela.

Desde 1929, a política mexicana foi hegemonizada por apenas um partido político, o PRI (Partido Revolucionário Institucional), herdeiro da Revolução Mexicana de 1910, marcada pelo movimento zapatista contra a ditadura do general Porfírio Diaz desde finais do século XIX. O Partido, até então, se comprometia com a causa revolucionária e era membro da Internacional Socialista, mas paulatinamente foi se deslocando ao centro e abraçando a ideologia da social-democracia. A falta de alternância, porém, foi causando incômodos cada vez maiores entre os grupos sociais organizados, mas apenas nos anos 90 o partido de oposição à direita, o PAN (Partido da Ação Nacional) conseguiu eleger seu primeiro governador. Já o primeiro Presidente panista seria eleito apenas em 2000, com Vicente Fox (2000-2006). Em “1994″, ano central da minissérie produzida pela Netflix e pela Vice México, a dominação do PRI já era amplamente questionada, embora o partido ainda fosse muito influente, sobretudo a partir da figura do Presidente Carlos Salinas (1988-1994), que tocava um amplo programa de desenvolvimento social, o Solidariedad.

Em ano eleitoral, porém, novas possibilidades estavam abertas aos rumos políticos do país e os antigos caciques do partido pareciam não dar mais conta das demandas sociais. Cabia, então, ao presidente do PRI naqueles anos, Luis Donaldo Colosio, levar o partido a mais uma vitória eleitoral. Colosio, no entanto, era um moderado, e via que a dominação priista no país era danosa à democracia mexicana. Ainda assim, assumiu a candidatura à presidência na campanha de 1994, amparado pela amizade com o Presidente Salinas, mas em confronto com setores mais conservadores do partido. Seguia, portanto, o clássico lema das plutocracias políticas, eternizado na fala de Don Fabrizio Salina na pele de Burt Lancaster no filme “O Leopardo” (1963), de Luchino Visconti, de que “as coisas devem mudar para permanecerem iguais”.

É esse imbróglio que a excelente minissérie tenta recuperar, à luz do distanciamento histórico, para entender como foram aqueles loucos anos 90 na política mexicana e suas consequências até hoje. Curiosamente, neste ano a polarização eleitoral entre PRI e PAN foi quebrada com a eleição de Andrés Manuel López Obrador, um candidato mais à esquerda, do Partido Revolucionário Democrático (PRD).  Nos anos 90, porém, a eleição fora marcada por uma tragédia: Colosio é assassinado com um tiro na cabeça durante um comício em Tijuana, uma das principais cidades mexicanas.

Desde 1º de janeiro daquele ano o governo Salinas, que chegava ao seu fim, enfrenta adversidades com a ação do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), que havia tomado a cidade de Chiapas contra os acordos do governo com os Estados Unidos e sua inclusão no NAFTA, o Tratado de Livre Comércio do Atlântico Norte. Os guerrilheiros de descendência indígena usaram então o elemento surpresa para a ação revolucionária. A reação violenta das autoridades, por meio das Forças Nacionais, causou imediata comoção entre os mexicanos, que se colocaram a favor dos zapatistas – em torno da figura de um de seus líderes, o comandante “Marcos” (codinome) – e contra o governo Salinas.

Tal mal-estar atrapalhou a candidatura de Colosio, visto por muitos como uma alternativa à hegemonia partidária, ainda que fizesse parte, ele mesmo, do PRI que governava o país há décadas. Isso porque Colosio despontava como um candidato de ideias progressistas, que tinha uma formação universitária em Harvard e buscava mudar a política de seu país, fora ser extremamente carismático. Parecia ser, de fato, um herói para muitos, e é impressionante ver as cenas recuperadas de seus comícios com centenas de milhares de pessoas nas principais praças do México.

A política mexicana permaneceria cada vez mais tumultuada depois da morte de Colosio. Muitas vezes, a população teve de defender com a própria vida o direito eleitoral, ameaçados por saques às urnas eleitorais nas semanas de contagem de votos. O principal drama, contudo, gira em torno das investigações sobre o asssassinato de Colosio. Não contentes com a versão do assassino, capturado em flagrante e que demonstrava traços visíveis de psicopatia e paranoia (e tendo escrito um livro, anos antes, em que anunciava seu ato “no dia em que a revolução faz 65 anos e na cidade em que o México foi fundada”, justamente ocasião do comício histórico e fatal de Colosio), inicia-se uma verdadeira trama novelesca para apurar até as últimas consequências o crime. Envolve-se, assim, entre os suspeitos, a figura do próprio Presidente e de seu irmão, em um complô fabulado para apagar o candidato progressista.

Todos os passos dessa trama foram acompanhados de perto pelas câmeras dos jornais, muitas vezes convidados pelas próprias autoridades para participarem das investigações. Assim como o assassinato de Colosio fora capturado por todos os meios de comunicação presentes no comício, seu julgamento foi amplamente televisionado, causando tremendo alvoroço numa população sedenta por vingança. Esse frenesi parece ter causado algumas injustiças, profundos mal entendidos, prisões injustificadas e a quase imolação pública de pessoas posteriormente inocentadas.

Um grande dramalhão mexicano, isso é o que podemos concluir, que envolve tantas figuras e escala a níveis tão surreais que por vezes é difícil de entender integralmente. Ainda assim, excelente produção justamente por ter sido real e assustadora por ter parecenças com a história brasileira, que também tivera políticos assassinados e tramas macabras. Triste mesmo é ver a destruição de um líder político carismático e potente – e posterior dissolução de sua família, quando sua esposa morre tempos depois por um câncer, deixando dois filhos pequenos. A história parece mesmo feita de grandes figuras.

Vinícius Volcof
@volcof

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