Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 31 de maio de 2019

Good Omens (Prime Video, 1ª temporada): obra inefável [SÉRIE]

Mesmo sem contar com o tempo que um livro permite para desenvolver seus personagens, Neil Gaiman assina um roteiro que foca no que mais importa para tornar esta série acessível aos fãs e aos novos consumidores.

É seguro afirmar que dificilmente se encontra nos dias de hoje um escritor tão inventivo quanto Neil Gaiman. Suas ideias tão mirabolantes surgidas de premissas tão simplificadas são capazes de capturar o interesse de qualquer espectador facilmente. Sendo assim, é fácil entender a expectativa gerada quando o Prime Video anunciou que a adaptação “Good Omens” seria roteirizada pelo próprio escritor inglês. Felizmente, a série não só não decepciona os fãs, como também deve satisfazer qualquer um interessado em uma boa narrativa fantasiosa.

A obra é baseada no livro “Belas Maldições”, escrito por Gaiman em parceria com o já falecido autor Terry Pratchett. Aqui vemos novamente a ideia de que ideais e seres fantasiosos assumem formas humanas – ou próximo disso. Mas diferente da exploração multirreligiosa vista em “Deuses Americanos”, aqui foca-se nos dogmas cristãos e, mais especificamente, ao fim dos tempos. Na trama, o anjo Aziraphale (Michael Sheen, “Animais Noturnos”) e o demônio Crowley (David Tennant, “Doctor Who”), companheiros desde a criação, buscam evitar o apocalipse ao tentarem criar o Anticristo como uma criança normal. Mas quando descobrem que o bebê responsável pelo início do Armagedom foi trocado quando nasceu, eles precisam encontrar um jeito de “evitar o inevitável”.

Aziraphale e Crowley não são os únicos tentando deter o Apocalipse, indo de encontro a todas as legiões de anjos e demônios prontos para concretizar o Grande Plano. Mas a decisão de Gaiman de dar o maior destaque para a dupla não poderia ser mais acertada. A dualidade entre eles, aliada à uma química incrível entre Tennant e Sheen, são as maiores qualidades da obra. E aqui temos um caso perfeito onde o estereótipo levado ao extremo se revela algo positivo, graças ao estilo mais trash adotado pela produção. Postura, tom de voz, roupas, gosto musical… tudo é exagerado de forma a ridicularizar as situações.

E é exatamente esse o objetivo do roteiro da obra: ridicularizar. Mas não como forma de deboche, e sim como uma grande crítica à sociedade como um todo. Ou seria coincidência que um dos quatro Cavaleiros do Apocalipse se aposentou (a Peste devia sofrer com os avanços da medicina) para dar lugar a algo bem mais atual – a Poluição? Ou ainda quando revelam que Jesus foi crucificado por pregar que as pessoas fossem gentis umas com as outras. A questão aqui não é apontar o dedo para um ou outro, e sim fazer com que cada um olhe para o que está fazendo e reflita se seus atos estariam realmente certos ou não.

“Good Omens” tem muito de uma produção fora dos padrões hollywoodianos (ou hboanos”) de muitas séries atuais. Apesar de participações estelares (Frances McDormand, Benedict Cumberbatch, Jon Hamm…), a produção não aspira ser mais do que realmente é. Os meros 6 episódios são perfeitamente suficientes para contar o que há de mais importante no livro em que se baseia (graças ao óbvio conhecimento de Gaiman do material original). Além disso, design de produção, figurino e, principalmente efeitos especiais abraçam o ridículo e o trash já citados e constroem um visual muito eficiente em passar as ideias, as críticas e toda a acidez que a história pede para as telas.

Além da dupla incomum de anjo e demônio, temos os núcleos da “Gangue do Anticristo”, onde o jovem Adam Young (Sam Taylor Buck), sem saber de sua linhagem demoníaca, foi criado como uma criança normal e possui um grupo com mais três amigos; de Anathema Device (Adria Arjona), descendente de Agnes Nutter, cujas profecias se mostraram as mais justas e precisas de todos os tempos; e de Newt Pulsifer (Jack Whitehall), um jovem que aleatoriamente vai parar no Exército de Caça às Bruxas. Apesar de cada um ter seu momento no desenrolar do Juízo Final, nenhum desses grupos tem desenvolvimento – e tempo – suficientes para ter algum destaque na história. O grupo de amigos pouco interage, perdendo muito da construção deles – principalmente do Cão -, Newt é praticamente um espectador dentro da trama, e apenas Anathema, muito graças ao carisma da atriz, consegue ter alguma evidência. Se por um lado é interessante manter o foco em Aziraphale e Crowley, por outro isso acaba transformando o final que já é construído para ser anticlimático em algo ainda mais enfraquecido, já que não nos importamos tanto com a maioria desses personagens.

Mas isso de maneira alguma tira os méritos de “Good Omens”. Primeiro porque esse tipo de clímax funciona muito bem com o que foi construído – a menos, talvez, com os Cavaleiros do Apocalipse, que também mereciam mais desenvolvimento e acabaram vendo um fim muito “gratuito”. E também porque é preciso entender que quando uma obra é transposta de uma mídia para outra tão diferente quanto livros e telas, mudanças precisam ser tomadas. E aqui essas mudanças são pontuais e muito eficientes. Não vemos tentativas de esticar narrativas desnecessariamente, muito menos possíveis ganchos para uma nova temporada – esses são prontamente queimados. O que recebemos foi exatamente o que se esperava: uma série curta e fechada, capaz de trazer de volta os sentimentos da primeira leitura da obra original, assim como eficaz em abrir as portas desse mundo imaginado por Gaiman e Pratchett para os espectadores de primeira viagem. Se a missão era não errar, foi atendida com maestria.

Martinho Neto
@omeninomartinho

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