Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 16 de junho de 2019

Lilo & Stitch (2002): nunca abandonar ou esquecer [CLÁSSICO]

Deixando de lado uma campanha de marketing que levou o público a acreditar que o filme era sobre algo completamente diferente, nota-se um belo trabalho sobre a importância e o peso de relações familiares.

O período entre 1989 (com o lançamento de “A Pequena Sereia”) e 1999 (com “Tarzan”) foi conhecido como a Renascença da Disney, com lançamentos de animações que fizeram grande sucesso de público e crítica. A companhia então entrou numa nova leva de longas esquecíveis e sem muita expressividade, com uma ou outra ocasional pérola brilhando entre eles. “Lilo & Stitch” é uma dessas jóias.

Lançado em 2002, o filme trouxe um material promocional fantástico. Os trailers mostravam Stitch invadindo animações clássicas do estúdio, para onde levava caos e confusão, e muitas pessoas foram conquistadas por essa premissa. Entretanto, por mais genial e engraçada que tenha sido, a promoção foi mal utilizada, pois acabou criando uma expectativa falsa para o longa. Nele, o protagonista alienígena vivia uma aventura no Havaí e não havia nada sobre crossovers com outros personagens da Disney.

Vindo do fraco “Atlantis: O Reino Perdido”, o estúdio de Mickey Mouse já não atraía muitos fãs para os cinemas e “Lilo & Stitch” não obteve grande sucesso de bilheteria. Porém, ao se revisitar o filme sem as expectativas falsas criadas pelo marketing mal conduzido e assistindo-o pelo que é, nota-se uma bela animação. Ao contrário do que é comum para a Disney, este filme não é baseado em algum conto de fadas, mas sim num livro infantil escrito (mas não publicado) por um dos diretores, Chris Sanders, que assina a direção com Dean DeBlois. Ambos depois dirigiram “Como Treinar o Seu Dragão”.

Stitch é uma criação biológica de um cientista louco em uma galáxia distante. Criado para ser superforte, raivoso e destrutivo, o Conselho Galáctico decide bani-lo para um asteroide deserto. Ele acaba fugindo numa nave roubada e caindo no Havaí, onde é considerado um cachorro esquisito. Ao descobrir que está sendo caçado por enviados do Conselho, assume a identidade canina para se esconder de seus perseguidores e ser adotado por uma família, composta por Nani, a irmã mais velha, e Lilo, a mais nova. Lilo é zombada na escola por ter gostos diferentes e é muito sozinha, daí vêm a ideia de adotar um cão e, então, temos a dupla de personagens do título.

Lilo (Daveigh Chase, a Samara de “O Chamado”) é uma personagem bem construída. A morte de seus pais é sentida em momentos bem criados, por exemplo, quando ela se atrasa para a aula porque tinha que alimentar um peixe que, segundo acreditava, controla o clima. Parece uma cena aleatória para pintá-la como excêntrica, mas depois é revelado que os pais de Lilo morreram num acidente de carro durante uma forte chuva. Ela também tem o hobby de fotografia e, novamente, parece randômico, mas depois descobrimos que ela guarda uma foto de seus pais embaixo do travesseiro, a única lembrança da imagem deles que ela tem. A relação entre ela e Stitch é outro acerto do filme. Ela vai mostrando ao alienígena que ele pode sim ser bom, que pode haver outra maneira de viver que não seja a da programação com a qual ele foi projetado. O afeto de Lilo vai conquistando-o aos poucos, ao mesmo tempo que cativa a plateia.

Além disso, há a relação de Lilo com a irmã, Nani (Tia Carrere, “O Jogo do Amor”), que tenta cuidar de tudo sozinha, mas sem ter tido chance de aprender como, vai se virando como pode. O roteiro não perde a oportunidade de incluir a tensão do conselho tutelar ameaçando tirar a criança de casa. É tudo muito bem construído e de cortar o coração, pois Nani se viu órfã ainda muito jovem, repentinamente tendo as obrigações e preocupações de adultos, e luta para conseguir lidar com isso o mais rápido possível para não perder a irmã. A cena em que as duas conversam sobre o peso por trás do significado de “ohana” e na que brigam para logo fazer as pazes são tocantes. O longa acerta em cheio nas principais relações que cria.

A composição visual de Stitch é curiosa. Ele não tem pupilas, o que dificultou transmitir suas emoções. Para contornar isso, os animadores o fizeram mais maleável, podendo forçar expressões e linguagem corporal que não só deram conta do recado, como criaram um personagem amado por muitos. A voz do protagonista é do próprio Chris Sanders.

Ao contrário dos musicais comuns à Disney, aqui os personagens não saem cantando. O filme, ao invés disso, usa várias canções de Elvis Presley (de quem Lilo é fã) para dar o tom de algumas cenas e criar outras que acertam no humor. As canções do Rei do Rock somadas à melodia incidental cheia de elementos da música havaiana resultam numa trilha sonora leve, alegre e divertida.

A animação do filme trouxe de volta a técnica de aquarela das antigas animações da Disney, como “Dumbo” e “Bambi“, que não eram usadas há muito tempo e acabou sendo um dos últimos sopros de vida da animação 2D no estúdio. Provavelmente a maleabilidade de Stitch não teria sido tão efetiva na mistura entre esquisito e adorável se tivesse sido produzido em CGI. Aliás, uma curiosidade: há uma cena de perseguição aérea entre naves por meio de montanhas – a cena original seria um avião voando entre prédios, mas como os ataques terroristas de 11 de setembro tinham ocorrido meses antes e a comoção ainda era palpável, o layout foi todo mudado.

Apesar de não ter tido o merecido reconhecimento nas bilheterias, o filme supera a campanha promocional enganosa e se prova um dos melhores do estúdio. Com uma história original divertida que acerta ao criar um drama familiar de cortar corações, bela animação, trilha sonora divertida e um novo personagem, que se tornou marcante no panteão da Disney, “Lilo & Stitch” merece mais reconhecimento.

Bruno Passos
@passosnerds

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