Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 26 de maio de 2019

A Gente Se Vê Ontem (Netflix, 2019): fantasia com conflitos sociais

Uma aventura sci fi que mostra como a ficção científica cresce ainda mais quando se entrelaça com questões sociais. A viagem no tempo é apenas um recurso para falar da situação dos negros nos EUA.

O cartaz e uma breve sinopse de “A Gente Se Vê Ontem” sugerem um filme banal de viagem no tempo, tendo como elemento diferenciador o protagonismo de dois jovens negros. Comentários apressados podem também insinuar que se trata simplesmente de uma história já muito vista protagonizada por um setor social marginalizado. Tais impressões superficiais podem ser rebatidas vendo o nome de Spike Lee (“Infiltrado na Klan“) como produtor, o que indica algo a mais na narrativa, e principalmente o próprio desenvolvimento da produção Netflix. Na realidade, é uma ficção científica interessada em abordar dificuldades dos negros nos EUA da atualidade.

O filme é uma combinação de fantasia sci fi com drama social, sabendo como transitar entre os dois estilos e estabelecer relações entre eles. Esses elementos são trabalhados a partir das trajetórias de Claudette (Eden Duncan-Smith, “Annie“) e Sebastian (o estreante Dante Crichlow), dois jovens prodígios que se interessam por tecnologia para a feira científica da escola e pelas possibilidades de entrar em uma universidade renomada. Enquanto eles tentam dominar a viagem no tempo, um trágico tiroteio os coloca em uma série de situações perigosas no passado.

O conflito central não é algo meramente reduzido a uma aventura de retorno ao passado sem implicações dramáticas ou algum peso maior. O deslocamento espaço-temporal realizado pelos personagens se entrelaça com os problemas enfrentados pelos negros no contemporâneo e amplamente noticiados na imprensa, como os casos de violência policial e de protestos populares contra os preconceitos sofridos. Basicamente, a trama incluiu referências ao assassinato de um jovem negro pela truculência policial, as manifestações de cidadãos pela necessidade de valorização das vidas negras (uma alusão às passeatas feitas em 2018 contra as mobilizações de supremacistas brancos ocorridas no ano anterior), os temores de negros quando são abordados autoritariamente na rua por policiais, e as dificuldades econômicas e educacionais de parte da população negra que se vê cercada pelo crime e pela miséria. Além das referências a eventos recentes, a narrativa também demonstra como Claudette considera a obtenção de uma vaga na universidade como uma perspectiva concreta de transformar seu futuro e superar as adversidades sociais de seu ambiente.

Essa contextualização faz com que a viagem no tempo assuma uma conotação social de luta contra os preconceitos raciais da sociedade. É interessante perceber como outros aspectos narrativos constroem esse panorama realista para a ficção científica: a caracterização de Brooklyn como um cenário de brancos, negros e latinos, uma diversidade social percebida na cena em que Claudette e Sebastian andam pela cidade; a placa com o nome da rua Malcolm X em uma esquina (menção a um famoso líder do movimento negro); bandeiras de países com elevada população negra hasteadas na frente de construções, como a Guiana e a Jamaica; e a trilha sonora de momentos específicos que utilizam o hip-hop e o reggae. O design de produção e o figurino também indicam traços próprios da tecnologia empregada pelos jovens, como a área em que planejam a viagem no tempo repleta de apetrechos tecnológicos e de imagens de grandes cientistas, e a força da protagonista que veste uma blusa tendo a estampa de uma super-heroína.

A parte científica é igualmente bem construída dentro das convenções do subgênero. O roteiro assinala os riscos inerentes à viagem no tempo, destacando o tempo limitado de permanência no passado, os perigos de encontrar suas versões passadas e as consequências trágicas de interferências sobre fatos importantes já ocorridos – a produção sabe como potencializar os conflitos demonstrando os desastres causados nas linhas temporais por personagens aparentemente bem intencionados. Mesmo com essas virtudes, existem falhas na criação dos efeitos visuais relacionados às viagens no tempo, que parecem artificiais, pouco integrados aos atores em cena e chamativos para sua inserção posterior na pós-produção.

Entrelaçar à ciência um contexto social pungente e contemporâneo também auxilia no desempenho dos atores principais em especial. Eden Duncan-Smith interpreta Claudette com a força que a personagem pede, consciente de suas dificuldades e capacidades e também autônoma o suficiente para buscar o que quer sem ser submissa a qualquer figura masculina. A cena em que afirma não precisar da vigilância ou dos cuidados excessivos do irmão Calvin (Brian Bradley, “A Longa Caminhada de Billy Lynn“) é simbólica de sua personalidade. Dante Crichlow constrói Sebastian como um companheiro verdadeiramente próximo e apegado à amizade de Claudette, sendo um fiel escudeiro preocupado com a exaltação emocional da amiga. Ainda há Johnathan Nieves (da série “Penny Dreadful: City of Angels“) interpretando de forma bem humorada o porto-riquenho Eduardo, um jovem divertidamente interessado amorosamente na protagonista.

Assistir ao encontro de ideias e abordagens diferentes em “A Gente Se Vê Ontem” é uma grata surpresa. Para alguns pode parecer um filme menor e apenas descompromissado, para outros pode ser uma história simples de pouco impacto, mas ele vai além dessas impressões precoces. A influência de Spike Lee e a direção discreta e eficiente de Stefon Bristol (ainda assim capaz de boas sacadas como o movimento circular da câmera nas sequências de volta ao passado) demonstram a possibilidade de a ficção científica se alimentar de fatos socialmente relevantes para criar um enredo com conteúdo.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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