Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 16 de maio de 2019

Nada Santo (Netflix, 2019): ascensão no mundo do crime

Filme retrata trajetória de gângster italiano que, de simples ladrão, se transformou em um dos maiores traficantes do país nos anos 90.

O cinema, principalmente o americano, quando investe em histórias com a temática italiana, costuma não deixar de falar sobre a máfia (a exemplo de “O Poderoso Chefão” ou “Família Soprano”) ou sobre o jeito característico dessa nacionalidade, mais “pavio curto” e expressivo, quase sempre com as mãos (como visto em “Green Book – O Guia”). Em “Nada Santo”, a Netflix explora as máfias milanesas do ponto de vista do próprio italiano. Ao apostar numa história contada na língua local e com o olhar nativo, a produção ganha em verossimilhança e consegue agradar com sua trama de ascensão e queda no mundo do crime.

Contando a típica história de um gângster, o filme dirigido por Renato De Maria (“A Linha de Frente”), começa no início dos anos 90 mostrando a carreira consolidada de Santo Russo (Riccardo Scamarcio, “John Wick: Um Novo Dia Para Matar”), poderoso traficante de Milão esbanjando poder, tanto social quanto financeiro, que se vê numa situação de ameaça por causa de atritos com turcos em função da venda de heroína. Em um típico recurso cinematográfico, o enredo volta no tempo para contar como Santo conquistou seu poder ao longo dos anos até se tornar um grande traficante.

Mostrando a força das tradições italianas, como o respeito à religião católica e à união das famílias, até na hora de praticar delitos, “Nada Santo” conta como um típico garoto da região da Calábria (localizada ao Sul da Itália) vai para Milão nos anos 60 e começa a se envolver com o crime depois de o pai negar tirar o filho da cadeia por ter cometido um delito banal. A partir daí, a sanha violenta de Santo brota de maneira visceral, para o azar de seus inimigos.

A promoção de Santo na esfera criminosa, primeiro com pequenos roubos e depois investindo em sequestros, venda de carros de luxo adulterados e por fim no tráfico de drogas, compõe a parte mais interessante do filme. A cidade de Milão, tomada pela máfia e por outros bandidos em qualquer esquina, é um dos motivos apresentados para Santo tomar sua decisão. Além disso, apesar dos problemas familiares, bem explorados na tela, parece que o protagonista realmente queria seguir esse caminho e não esconde de ninguém o quanto gosta da vida de bandido, com riquezas e luxo, mas com o constante risco de morte.

Dividindo a tela com sua vida na criminalidade, vemos também um Santo clichê em produções sobre a máfia: um homem com uma família, casado com a jovem que conheceu quando era adolescente, Mariangela (Sara Serraiocco, da série “Counterpart”), com filhos dos quais ama muito, amigos – todos criminosos – e, descontente com a monotonia do casamento encontra na bela Annabelle (Marie-Ange Casta, “Uma Noite em Paris”) uma nova paixão com a qual passa a ter um caso. Apesar de ser interessante acompanhar toda as agruras na vida de Santo, o retrato da sua vida pessoal tira parte do vigor do filme. Seu lado empreendedor como bandido consegue ser mais atrativo.

A importância de mostrar essas duas narrativas juntas se dá, principalmente, pela interligação de ambas. A queda de uma leva à queda da outra. Quando as questões pessoais na vida do protagonista começam a desabar, sua vida “profissional” vai junto. Nesse momento, destaque para Mariangela, que em um vórtice de depressão, decorrente do sentimento de não se sentir mais atraída pelo marido, dá duas guinadas surpreendentes refletidas no desfecho do filme e na forma de dúvida de Santo sobre as reais intenções da sua mulher. Questão não respondida, melhor assim.

Com uma reconstituição histórica quase perfeita, investindo em elementos que nos levam dos anos 60 para os 90 de maneira fiel, como carros antigos, vestuário e paisagem, a produção peca apenas na caracterização dos seus personagens, especialmente de Santo, quase a mesma pessoa nos anos 70 e nos anos 90, parecendo ter ficado poucos meses mais velho. Retrato do momento de êxtase no consumo das drogas, em destaque na década de 90, em função do boom da economia mundial, “Nada Santo” mostra as vantagens do crime: trazer grandes riquezas, prestígio no meio e alegrias materiais, mas nunca por muito tempo. Como o efeito da heroína nas veias de um viciado, uma hora o prazer acaba, deixando o sentimento de melancolia e solidão.

Filipe Scotti
@filipescotti

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