Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 22 de maio de 2019

O Homem que Matou Dom Quixote (2018): fantasia real

Misturando a história da produção de dois filmes sobre o cavaleiro espanhol, esta obra que levou trinta anos para ser concluída apresenta roteiro conciso e história interessante.

Publicado originalmente em 1605, “Dom Quixote” é um marco da literatura mundial. Isso se dá principalmente pela obra contar, com um tom de paródia, a história de um fidalgo que perde a razão após a leitura compulsiva de romances sobre cavalaria e decide, com seu amigo Sancho Pança, se aventurar pela Espanha em busca das mesmas façanhas narradas nos livros tão apreciados por ele. Transformar a narrativa de qualquer livro em filme é algo banal no mundo do cinema, quase uma prática obrigatória em uma indústria sempre em busca de renovação e que encontra na literatura um campo fértil de novas ideias. Porém, no caso de “O Homem que Matou Dom Quixote“, essa história de produção e adaptação do trabalho levou 30 anos para ser concluída. Finalmente terminado, o filme conta, indiretamente, uma cômica e ao mesmo tempo trágica aventura de criação de um filme sobre Dom Quixote que não vai para frente em função de dilemas do seu diretor, atormentado pela lembrança da sua primeira obra cinematográfica, também sobre Dom Quixote. Confuso? Mais subjetivo impossível.

Antes de mais nada, é importante contextualizar o drama vivido por Terry Gilliam (“Os Doze Macacos“), famoso por ter feito parte do grupo britânico Monty Python, e aqui diretor e idealizador da releitura da história do cavaleiro espanhol na luta contra moinhos de vento. Problemas como a falta de financiamento, troca de elenco e até uma inundação em um set de gravação foram atrasando o projeto de Gilliam, que nunca desistiu da empreitada e finalmente em 2018 conseguiu lançar seu filme.

As lentes do ex-integrante do grupo que revolucionou a comédia se voltam para Toby (Adam Driver, “Infiltrado na Klan”), um diretor de cinema com o desafio de gravar uma nova versão da clássica história do cavaleiro espanhol. Claramente sem motivação para gravar um longa-metragem de grande orçamento, onde ele deve se sujeitar a interesses de várias pessoas, principalmente os financiadores, Toby relembra sua primeira produção cinematográfica feita quando ele era aluno de cinema e, por coincidência, uma obra sobre Dom Quixote também gravada na Espanha. A partir de flashbacks, o diretor lembra do passado, quando era mais fácil produzir um filme e, sem obrigações, bastava ter uma câmera na mão e um elenco de moradores locais.

Esse sentimento de nostalgia leva Toby à cidade onde foi gravado seu primeiro filme. Lá ele descobre as consequências do seu trabalho sobre os residentes, como o pai que perdeu a filha para a prostituição após promessa de se tornar uma atriz de sucesso. Mas a maior surpresa do diretor se dá quando ele descobre que seu primeiro Dom Quixote, um velho sapateiro local (Jonathan Pryce, da série “Game of Thrones”) escolhido pela semelhança com o velho descrito no romance de Miguel de Cervantes, segue vivo interpretando seu papel. A partir daí a produção envereda para um caminho subjetivo, misturando o longa-metragem que Toby deveria gravar com o produzido no início da sua carreira, resultando em uma nova leitura do clássico espanhol, atualizada com os novos tempos. Nessa nova narrativa, o velho sapateiro que acha ser Dom Quixote adota Toby como Sancho Pancha, e juntos desbravam os mais variados cenários de uma Espanha igual e diferente da retratada em 1605.

Misturando ficção com fantasia e inserindo temas cotidianos, como a imigração e o poder econômico de poderosos (assunto não tão novo assim), “O Homem que Matou Dom Quixote” se destaca pelo seu roteiro conciso, no qual tudo é amarrado de forma muito natural – algo difícil dado a subjetividade e o intercalamento de histórias diferentes. Além disso outros dois pontos se destacam. Primeiro, a interpretação de Jonathan Pryce. O experiente ator consegue passar toda a loucura e, ao mesmo tempo, o espírito de ousadia de Dom Quixote. A atuação do ótimo Adam Driver também é superior aos demais integrantes do elenco, mas não chega ao nível de Pryce. A fotografia é outro fator positivo. O uso de cores saturadas aliado com a lente grande angular permite ver toda a grandiosidade da arquitetura espanhola da época do romance de Miguel de Cervantes. Castelos e outras grandes construções antigas são valorizadas pelo diretor de fotografia, Nicola Pecorini (“Incompreendida“), fiel a Gilliam desde o começo da produção trinta anos atrás.

O alto tempo investido para assistir ao filme (mais de duas horas) cansa um pouco, algo que pode ser relevado se pensarmos na epopeia de Terry Gilliam para lançar sua obra. Apresentando coesão no terceiro ato, quando a aventura dos filmes de Toby se junta de maneira natural, “O Homem que Matou Dom Quixote” é feito para se pensar sobre quem é louco e quem não é nos tumultuados dias atuais. Não seria melhor viver como um louco que não liga para os dramas da realidade, vivendo sempre em um mundo de fantasia? “Talvez a gente deva voltar e enfrentar a triste realidade.” Com essa frase, citada por Toby durante uma das suas andanças com Dom Quixote, somos alertados que devemos voltar para a vida real. Os momentos de fuga da realidade ficam para quando estivermos no cinema, enfrentando gigantes, talvez.

Filipe Scotti
@filipescotti

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