Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 13 de maio de 2019

Hellboy (2019): fiel no teor e desleal no espírito

O reboot tem muito da mitologia original e explora bem a classificação para maiores, mas se atropela no excesso de personagens. Na incapacidade de se desvencilhar dos filmes anteriores, este opta em não se levar a sério.

O demoníaco anti-herói foi criado nos quadrinhos em 1993 e desde então vem sendo publicado pela editora Dark Horse sob a tutela do seu criador Mike Mignola. “Hellboy” (David Harbour, da série “Stranger Things”) veio ao mundo ainda bebê durante a Segunda Guerra Mundial, numa costa da Escócia, onde nazistas mesclaram ciência e magia negra para que um necromante trouxesse o “garoto demônio” para a Terra. Ele veio para ser a besta do apocalipse, mas o plano maligno foi surpreendido pelos soldados aliados, e foi incumbida ao professor Trevor Bruttenholm (Ian McShane, da série “Deuses Americanos”) a tarefa de criá-lo como um filho no B.P.R.D. (em português, Departamento de Pesquisa e Defesa Paranormal). Já adulto, Hellboy se torna um aliado dos humanos na batalha contra todo tipo de ameaça sobrenatural.

Grã-Bretanha, ano 517. As criaturas das trevas vencem a batalha contra os homens forçando o rei Arthur e o poderoso mago Merlin a se render a Vivien Nimue (Milla Jovovich, “Resident Evil 6: O Capítulo Final”), a Rainha de Sangue. No entanto, o cavaleiro desfere um golpe repentino e decepa a cabeça da bruxa com a lendária Excalibur. Enquanto ainda jura vingança, ela é esquartejada em seis pedaços que são enterrados em diferentes regiões remotas. Nos dias atuais, Hellboy vai à Tijuana à procura de um agente desaparecido. É num ringue clandestino que ele encontra o que fora seu parceiro, agora um vampiro. Pouco antes da morte ele chama o protagonista pelo seu verdadeiro nome e profere que o fim está próximo. Após retornar para a base no Colorado, o professor Bruttenholm fala sobre o Clube Osíris, uma sociedade oculta britânica que também luta contra as forças das trevas e precisa da ajuda de Hellboy para combater alguns gigantes. É na Inglaterra que Lady Hatton (Sophie Okonedo, “Depois da Terra”) revela a Hellboy seu real propósito, que fora omitido por seu pai.

O filme tem um prólogo inspirado, digno de uma tragédia grega incitando uma futura vingança. Tal argumento, que a princípio parece muito polido no papel, infelizmente se dá totalmente na primeira meia hora de projeção. O longa foi adaptado diretamente de três arcos das histórias em quadrinhos (“Darkness Calls”, “The Wild Hunt” e “The Storm”), ou seja, há muitos acontecimentos para serem trabalhados, e o diretor Neil Marshall (“Centurião”) segue por uma dinâmica trash. Ainda assim, o primeiro ato convence pela originalidade.

A produção vai para o desenvolvimento intermediário com inserções de flashes quebrando o ritmo da ação e levando o personagem a correr de uma situação para outra, com interações extremamente forçadas, como a de Baba Yaga. Hellboy sempre obtém informações de formas fáceis. Nesse tempo, o anti-herói é traído pelos caçadores e quase morto, mas ele sobrevive graças à Alice (Sasha Lane, “O Mau Exemplo de Cameron Post”), interesse amoroso inserido sem qualquer relevância para a trama. Quem rouba visualmente as cenas é o porco gigante Gruagach (Stephen Graham, “Rocketman“), lembrando as incríveis criaturas prostéticas criadas por Guillermo Del Toro. Gruagach está reunindo os membros de Nimue e ela está ávida para persuadir Hellboy a trazer o caos ao mundo.

O ato final tenta ser apoteótico, como aquele já visto no “Hellboy” de 2004. O maior equívoco é querer fazer cenas grandiosas com apenas 50 milhões de orçamento. No quesito direção de arte, Del Toro trabalhou melhor a maquiagem privilegiando a química dos personagens em ambientes fechados. Aqui o diretor conduz tudo com muita pressa. A maquiagem do protagonista é estranha e a fotografia não busca afeição com o personagem. Embora não tenha a voz cavernosa de Ron Perlman na adaptação anterior, David Harbour se esforça, mas as piadas verborrágicas são ultrapassadas e destoam completamente das situações de humor sombrio tão características nas HQs. À vilã de Milla Jovovich cabe apenas frases de efeito. E apesar da falta de suspense, a sanguinolência é bem utilizada de várias maneiras visuais com total intenção gore.

Foi-se talvez a última oportunidade de fazer uma boa adaptação de “Hellboy” para o cinema. Mesmo com a visão mais fantasiosa do mexicano, todos teriam ganhado com o fechamento da sua trilogia. A diferença é que dessa vez o criador do personagem ajudou a cavar sua cova porque trabalhou ao lado da produção. Ainda assim, há no filme uma linha agradável que resgata a atmosfera bucólica e medieval do material original. Em alguns momentos parece um game com tantas entidades e sangue jorrando. É insano, mas falta sintonia entre os realizadores e o público. Se realmente era para ser o fim, ao menos poderiam ter abusado mais do horror “lovecraftiano” tão presente na obra de Mike Mignola.

Jefferson José
@JeffersonJose_M

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