Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de maio de 2019

A Sombra do Pai (2018): um filme de morto-vivo

Trabalhando a sugestão e a atmosfera de inquietação, Gabriela Amaral cria mais um filme de terror capaz de perturbar plateias a partir da união entre realismo e fantástico.

O ano de 2018 foi positivo para o cinema brasileiro de terror com os lançamentos de “As Boas Maneiras” e “O Animal Cordial”. Esse último foi dirigido por Gabriela Amaral de maneira visceral, dando espaço ao grafismo da violência e da potência explícita da narrativa. Seu mais novo trabalho no gênero, entretanto, aposta em recursos mais sugestivos, contemplativos e dramáticos para criar tensão. “A Sombra do Pai” é uma história de terror com abordagem realista e intimista sobre o peso do luto para aqueles privados do convívio com seus entes queridos.

O ponto de partida da trama é a morte da mãe de Dalva (Nina Medeiros, “As Boas Maneiras”). Apesar de ser uma menina de nove anos, ela se torna responsável por sua residência quando a tia Cristina (Luciana Paes, “O Animal Cordial”) se casa e se muda e quando seu pai Jorge (Júlio Machado, “Entre Irmãs”) adoece. A partir daí, Dalva deixa de lado sua infância para cuidar do pai, enquanto ele sofre com a perda da esposa e de seu melhor amigo. A relação entre os dois é testada a partir do instante em que precisam enfrentar a distância que os separa.

Nos primeiros minutos, a apresentação dos personagens e da dinâmica entre eles indica sensações de estranhamento e desconforto que ultrapassam o estilo de filme de drama usual, dentro do que a sinopse poderia supor. Cristina cuida da criança após a morte da mãe mesmo agindo de modo reprovável, como quando faz um ritual de sangue para segurar o homem amado na presença de Dalva. O pai é rude e distante da criação da filha, comportando-se sem o mínimo tato em relação à perda da família ao falar para a menina que ela precisa saber que dentro do caixão há apenas ossos. E Dalva é uma criança incomum, guardando uma trança da mãe morta e afirmando ser capaz de conversar com espíritos para ajudar nos relacionamentos amorosos da tia ou para fazer algo ainda mais grave. A sucessão de planos de animais mortos ou se alimentando de forma desagradável e de bonecas estranhamente montadas ressaltam a caracterização particular do universo da narrativa.

À medida que a história avança, se destacam as razões para o desconforto sentido pelo espectador: pai e filha como polos distintos do sofrimento causado pela perda da família, cada um deles representando consequências específicas. A menina expõe o lado sobrenatural do roteiro, deixando dúvidas se é, de fato, portadora de habilidades paranormais e sugerindo discretamente os efeitos de sua “aptidão” (como nas cenas em que demonstra seu poder na companhia de outras crianças). Jorge exemplifica o tipo de sujeito que não sabe lidar com emoções fortes e se torna ainda mais brutalizado e grosseiro com todos ao seu redor. Ele segue atormentado pela morte por onde vai (inclusive em seu local de trabalho) e sofre impactos físicos decorrentes de seu sofrimento reprimido (mudanças que remetem às características de um zumbi).

Além das interações muito particulares dos personagens, a atmosfera de inquietação também é construída pela montagem. Ela esconde a revelação de algo sobrenatural ou chocante, cortando o plano com o intuito de sugerir o terror, insinuar o que pode ocorrer e a violência de seu significado – a realização de um “ritual” por Dalva e pela amiga é ainda mais impactante porque seus resultados apenas podem ser ouvidos fora de quadro. O encadeamento das sequências faz com que os arcos de Jorge e Dalva desenvolvam a tensão com eficiência. A menina acredita que conversa com espíritos e pode trazê-los de volta à vida, cabendo à atriz uma postura robótica reforçada pelo longo penteado escuro e mal cuidado que cai sobre seu rosto. Já o pai aparenta ter menos vida do que as pessoas mortas, devido à criação de um personagem grosseiro e violento potencializado pela maquiagem que o deixa quase monstruoso com suas feridas, olheiras e expressão cadavérica.

Gabriela Amaral também merece elogios ao chamar a atenção para a estranheza do mundo fantasioso que cerca a inusitada relação entre pai e filha, na qual a criança é a responsável pela casa. Quando sua câmera filma as cenas segundo o ponto de vista de algum personagem, a força dramática e a perturbação do momento se intensificam, por exemplo, nas sequências em que a menina observa a dinâmica entre a tia e o pai em uma posição de vulnerabilidade e em que Jorge se desespera ante a proximidade da morte enquadrado de forma trêmula.

A diretora ainda sabe orquestrar muito bem as referências aos filmes “A Noite dos Mortos-Vivos” e “Cemitério Maldito” à sua trama sobrenatural. Tais elementos dialogam com a fotografia que, mesmo em cenas diurnas, evita iluminar o quadro com cores amenas e quentes e prefere apostas em luzes opacas, sombras e brilhos espectrais na escuridão. Eles também se relacionam com a trilha sonora opressiva de notas angustiantes colocada em momentos pontuais para complementar a sugestão de que algo chocante está prestes a acontecer, mesmo que essa ameaça seja somente sugerida.

“A Sombra do Pai” é uma experiência sensorial mais discreta e intimista do que o trabalho anterior de Gabriela Amaral, algo que atesta sua versatilidade em inquietar o público. Nesta produção, ela trabalha como as pessoas vivas podem estar mortas por dentro em um cenário de degradação física e psicológica causado pelo luto e pela desorientação. Dentro disso, tensão, incômodo e perturbação serão sensações que acompanharão o espectador durante toda a sessão.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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