Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 29 de abril de 2019

Deuses Americanos (Prime Video, 1ª Temporada): preparando o terreno [SÉRIE]

Construindo muito bem os conceitos trabalhados por Neil Gaiman em seu livro, a série é um excelente convite para o universo de fantasia urbana.

Logo no início, “Deuses Americanos” deixa claro o formato “contação de história” que a série da Amazon Prime segue durante sua primeira temporada. E não é preciso muito esforço para entender a necessidade de se fazer desta forma. A obra de Neil Gaiman é complexa e rica em detalhes por colocar num mesmo universo deuses de diversas mitologias, além de criar a imagem de novas divindades. Mesmo para quem está acostumado com a literatura de Gaiman, essa mistura pode soar confusa e leva algum tempo para se situar. Para aqueles que tiveram pouco contato com seus livros, cair numa adaptação como esta poderia ser insuportável caso não houvesse um guia para acompanhar na jornada.

Porém, isso não significa dizer que a série é simples ou expositiva. Acompanhando o protagonista, Shadow Moon (Ricky Whittle, “Felicidade Por Um Fio”), somos jogados numa série de acontecimentos que antecipam uma grande batalha entre deuses. De um lado, aqueles que lutam para não serem esquecidos – e, consequentemente, morrerem – pelos seus fiéis liderados por Mr. Wednesday (Ian McShane, “John Wick: Um Novo Dia Para Matar”). Do outro lado, uma legião de novos deuses, que nasceram graças ao culto realizado pela sociedade aos prazeres de seus tempos, liderados por Mr. World (Crispin Glover, “A Ressaca”).

Através dos olhos de Shadow, é possível acompanhar a história de duas formas. A primeira implica em saber da trama e onde ela irá culminar. Nesse sentido a narrativa se destaca menos que os elementos visuais. É possível ver cada capítulo da jornada sabendo que algo fantástico pode acontecer e, a cada encontro, fazer a ponte entre as mitologias. A outra possibilidade é não saber (exatamente) do que se trata. E aqui o peso do texto cresce muito, pois é preciso acreditar, algo que a série enfatiza constantemente, para poder seguir em frente. A estranheza inicial é gradativamente substituída pelo interesse e fascínio que a mistura dos diversos panteões provocam. Ao mesmo tempo, nada é explícito, portanto é importante ser um observador ativo para não ser jogado para fora da experiência.

Já se distanciando do livro, ao menos no formato, a série tem na primeira temporada a preparação para a batalha, ou para o início da batalha, assim como a construção do universo apresentado, o que retoma o conceito de “contação de história”. Aqui essa função fica sob a responsabilidade, principalmente, de Mr. Ibis (Demore Barnes, da série “12 Macacos”) e Mr. Nancy (Orlando Jones, da série “Sleepy Hollow”), que contam histórias do passado, contextualizando com o que está acontecendo no presente. Por um lado isso ajuda a solidificar o conceito fundamental de “Deuses Americanos” e pode acrescentar muitas informações valiosas para os que não estão habituados com as muitas mitologias existentes. Porém, a produção abre mão de um clímax, tendo a temporada inicial servido quase como um prólogo.

Investindo num visual bonito e criativo e sem deixar de lado o bom humor da obra original, a série é um convite interessante para quem deseja mergulhar num universo de fantasia cada vez mais valorizado e explorado pela literatura, mas ainda pouco aproveitado pelo audiovisual. A mistura entre o real e o fantástico é orgânica e o ritmo é constante na grande maioria dos capítulos, com alguns pequenos momentos mais arrastados, mas que não prejudicam a dinâmica geral.

Mesmo não nascendo como um clássico moderno, a adaptação de “Deuses Americanos” não deixa a desejar, nem fica aquém do material original. As personagens têm um ótimo desenvolvimento e é possível sentir o clima de tensão construído ao longo dos episódios. Talvez tenha faltado um momento grandioso, que desse a real proporção que uma luta entre deuses deve assumir, porém, o conteúdo oferecido na primeira temporada é suficiente para dizer que uma das mais importantes obras de um dos grandes nomes da atual literatura fantástica está bem encaminhada.

Robinson Samulak Alves
@rsamulakalves

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