Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 03 de maio de 2019

The Newsroom (HBO, 1ª Temporada): missão de civilizar [SÉRIE]

A produção da HBO mostra as contradições e os desafios do jornalismo numa trama com ritmo alucinante proporcionado pelo dinâmico roteiro do criador da série, Aaron Sorkin.

O mito da Caverna de Platão é uma metáfora criada pelo filósofo grego que dá nome a essa alegoria. Ela retrata a história de homens acorrentados dentro de uma caverna sem a possibilidade de desfrutar da vida real no lado de fora. Esses prisioneiros viam apenas as sombras das pessoas livres sendo projetadas pelo fogo. Quando libertadas do seu cativeiro, não conseguiam lidar com a luz do sol e com essa nova “realidade”. Em “The Newsroom”, o jornalista e âncora do principal jornal da fictícia ACN (Atlantis Cable News), rede de TV a cabo situada em Nova York, Will McAvoy (Jeff Daniels, “O Apanhador era um Espião”), parece estar na mesma situação dos homens aprisionados na caverna de Platão. Considerado um jornalista passível, Will exerce a função de apresentador cuja única função é ler as notícias em um teleprompter sem questionar fatos nem se esforçar na busca de histórias interessantes. Popular pelo jeito pouco conflituoso, Will parece sedado, indiferente com o mundo a sua volta e só pensa na audiência. Pelo menos até o momento quando ele responde uma pergunta durante um debate universitário sobre os motivos para os Estados Unidos serem o maior país do mundo. Sua resposta o faz despertar para a vida real, tornando inigualável a experiência de ver esta série da HBO.

O despertar de Will não aconteceu por acaso. Mudanças na ACN obrigam o diretor de jornalismo da emissora, Charlie Skinner (Sam Waterston, “Suprema”) a contratar a sempre confusa e eficiente MacKenzie McHale (Emily Mortimer, “O Retorno de Mary Poppins”) como nova produtora do News Night, jornal apresentado por Will. Defendendo uma imprensa quase utópica, voltada para o povo e sem se importar com os interesses financeiros por trás das notícias, MacKenzie traz à tona um novo Will, mais empenhado em questionar e defender a verdade, sem ter medo de criticar qualquer um. No terceiro episódio da série, em uma clara autocrítica ao jornalismo atual, Will, com ajuda de toda sua equipe, pede desculpas para seus telespectadores pela forma como as notícias são exploradas por todas as emissoras, com um viés claramente comercial, tendo sempre a audiência como referência. O âncora mostra como o jornalismo televisivo foi construído por meio de uma concessão do poder público para empresas privadas transmitirem sua programação e lucrarem com isso.

Além da qualidade do roteiro, proporcionado pelo ótimo texto do criador e roteirista Aaron Sorkin, que imprime toda a sua sagacidade e visão política, há elementos que também são percebidos em outros dos seus trabalhos, como nos filmes “A Grande Jogada” e “A Rede Social” e na clássica série “The West Wing”, sempre com o uso de diálogos extremamente rápidos (difícil de acompanhar para quem assiste com legendas), ácidos e carregados de ironias. “The Newsroom” conta com um elenco de peso para conseguir sustentar os diálogos escritos por Sorkin, intercalando sarcasmo, comédia, raiva e tristeza em uma mesma cena. Destaques para o assistente de produção Jim Harper (John Gallagher Jr., “A Justiceira”), a jornalista Maggie Jordan (Alison Pill, “Vice”) e por Neal Sampat (Dev Patel, “Atentado ao Hotel Taj Mahal”), um assistente responsável pelas redes sociais da ACN e cujo objetivo maior é se tornar um jornalista profissional. Outro ponto evidente gira em torno da montagem e fotografia, sabendo valorizar os diálogos e, mais importante, conseguindo colocar o público dentro de uma redação, com toda a correria, estresse e satisfação trazidos pela loucura do jornalismo diário.

Voltada mais para a realidade norte-americana, debatendo temas periféricos para os brasileiros, Sorkin busca com “The Newsroom” mostrar um caminho de esperança na mídia diante de um cenário degradante – a série, produzida em 2011, não tinha ideia de quanto o jornalismo podia piorar nos anos seguintes. Neste cenário quase utópico, a nova equipe do News Night, e principalmente Will, fazendo analogia ao livro “Dom Quixote”, têm a mesma missão do cavaleiro espanhol: civilizar, lutar contra grandes moinhos (os poderosos), informando com qualidade e evitando notícias tendenciosas impetradas por uma mídia suja exploradora de fofocas e notícias questionáveis quanto a relevância para o interesse público.

Lutando inclusive contra a própria emissora onde trabalha, a série acerta ao mostrar não apenas uma batalha desenfreada para informar melhor, mas apresentar o jogo existente por trás das notícias, os interesses corporativos que fazem o telespectador ver uma matéria e não a outra. A briga da redação do News Night contra Leona Lansing (Jane Fonda, da série “Grace and Frankie”), a presidente da AWN, grupo dono da ACN, para conseguir falar sobre políticos e empresários pertencentes ao círculo de relações da emissora é notável ao mostrar as contradições do jornalismo, com a intersecção de diversas áreas que tornam o jogo ainda mais complicado.

Da mesma forma que no romance de Miguel de Cervantes, em que o maluco Dom Quixote enfrenta moinhos, “The Newsroom” é uma obra crítica e atual como poucas. Mantendo a fama da HBO em produções questionadoras e bem produzidas, a série contextualiza e debate o jornalismo em um cenário de intenso uso das redes sociais – que em 2011 ainda estava nos seus primeiros passos – sempre valorizando e mostrando o quanto o quarto poder é importante para manter qualquer democracia no mundo funcionando plenamente. Hora de questionar por que você está vendo determinada notícia na TV.

Filipe Scotti
@filipescotti

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