Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 05 de abril de 2019

Girl (Netflix, 2018): íntimo retrato sobre a transsexualidade feminina

Sem medo de tratar de um tema sensível e polêmico, "Girl" apresenta uma protagonista transsexual e seus conflitos internos enquanto persegue seus objetivos no balé.

Lara (Victor Polster) é uma adolescente de 15 anos em transformação. Sua identidade é feminina, mas seu corpo ainda é de um garoto. O processo de redesignação sexual que envolve tratamentos hormonais e intervenções cirúrgicas é árduo e faz temer seu compreensivo pai Mathias (Arieh Worthalter, “Atentado em Paris”). No entanto, Lara não vê a hora de abandonar a forma “masculina” e começar a viver completamente, pelo menos sob seu ponto de vista, como mulher. Um filme Netflix, “Girl” conta a história deste momento da vida da garota enquanto ela também lida com uma mudança de casa e, especialmente, para uma nova academia de dança, onde ela luta por sucesso como bailarina.

O filme belga é dirigido por um estreante, Lukas Dhont, e acumulou prêmios em festivais de cinema pelo mundo, incluindo no prestigioso Festival de Cannes. Porém, o sucesso de crítica não poupou a obra de comentários pela maneira em que aborda o sensível tema da transsexualidade. O corpo de Lara recebe um enfoque maior que seu psicológico, o que inclui a região genital do ator cisgênero escolhido para o papel. Há uma preocupação em torno da representatividade sobre quem deveria interpretar personagens transsexuais em filmes. Enquanto uns acreditam que a liberdade artística deve ser preservada, outros creem que não escalar atores de acordo com os papéis que devem interpretar vai de encontro aos interesses de maior participação da minoria representada. No entanto, apesar das críticas de alguns grupos, “Girl” recebeu o endosso da pessoa cuja vida inspirou o longa.

Lara é introspectiva e fechada. A câmera de Lukas precisa se contentar com os silêncios da personagem ao mesmo tempo que convida o espectador a se aproximar da garota por empatia. Em primeiro lugar, ela é disciplinada e perseverante. Tais características se relacionam ao objetivo de conquistar lugar como bailarina. Apesar de já dominar a dança enquanto menino, os desafios do balé para corpos femininos são outros e exigem treinamento específico. Na frente da família, Lara esboça um sorriso doce e confiante, mas basta sair dos olhos do pai que o semblante desmonta para o desconforto e o medo dos obstáculos que ela pode vir a enfrentar. A todo tempo a garota se vê vulnerável a olhares e situações constrangedoras. Uma tensão se cria no espectador, esperando que algo muito ruim possa acontecer com a personagem a qualquer momento. Ela chega a enfrentar pequenas agressões psicológicas, mas nada que modifique bruscamente o tom do filme até próximo de seu desfecho.

Tendo em vista os desafios das pessoas transsexuais na sociedade brasileira, a vida de Lara até que é bastante privilegiada. Sua família suporta sua decisão, até mesmo os parentes mais distantes. Sua escola é preparada, banheiros não são problemas, e seus médicos e psicólogos, altamente capacitados. Seus professores de dança são bastante calorosos e compreensivos, mesmo com a rigidez dos treinos. Até seus colegas, apesar de alguns comportamentos inadequados e de certa maneira agressivos, nunca ultrapassam o limite da ofensa, muito menos da violência física. A fotografia de “Girl” reflete o ambiente positivo e favorável, com cores quentes e cenários bem iluminados. O elemento de conflito para Lara é unicamente seu descontentamento corporal e consequente ansiedade aguda, como se sua vida só pudesse iniciar depois que seu corpo se adequar à sua identidade. A princípio, a adolescente não suporta nem ver sua genitália masculina. Tal fator muda de maneira interessante quando ela tem sua primeira experiência sexual, mas ainda assim sua impaciência obstinada a leva aos seus limites físicos.

A relação de Lara com o balé é o único elemento dramático que oferece à narrativa a clássica trajetória arcada. A disciplina obsessiva para obter sucesso nos treinos se desenvolve lentamente, e o uso cauteloso do horror corporal ajuda a marcar a escalada destrutiva da personagem. As diferentes nuances nas aparentes repetitivas movimentações da bailarina em relação à câmera alcançam ótimos resultados ao final e são tão eficazes quanto os últimos planos do filme. O clímax que antecede o desfecho, no entanto, apresenta uma grande controvérsia tonal conforme já mencionado. Ao longo da obra, a história trabalha bem as possíveis expectativas divergentes do público e, até o final, a natureza e a intensidade dos obstáculos para a protagonista já estão bem definidas. Entretanto, o roteiro decide ainda assim elevar a intensidade, justificando inquestionavelmente a inserção da nota presente na abertura que alerta tratar de temas delicados.

Apesar do descontentamento com o clímax final e dos poucos elementos narrativos usados para ilustrar os conflitos internos da protagonista, “Girl” faz um excelente trabalho ao retratar o íntimo de uma pessoa em guerra consigo mesma, buscando projetar alguns dos desafios em torno da transsexualidade. É verdade que a sociedade belga parece estar anos-luz à frente de outros países em relação a essas questões, mas o filme ainda assim serve ao propósito de debater o tema com sensibilidade. Por fim, resguardada a discussão sobre representatividade à parte, o jovem ator e bailarino selecionado para interpretar Lara faz um brilhante trabalho ao executar a difícil tarefa de estrelar uma obra tão intimista.

William Sousa
@williamsousa

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