Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quinta-feira, 21 de março de 2019

Imagem e Palavra (2018): a língua não é o mesmo que a linguagem

Com mais um estudo sobre os limites e potência das formas comunicativas, Godard segue sendo o principal pensador da imagem num mundo repleto delas.

“Caderno de Imagens” – esse é o título original do novo filme de Jean-Luc Godard, o diretor francês mais vanguardista e experimental de todos os tempos, que aos 88 anos recebeu com a obra (mas não apenas por ela) a Palma de Ouro Especial Festival de Cannes de 2018, presidido pela atriz Cate Blanchett. Sua bricolagem visual apresenta mais um estudo sobre os limites do cinema e da linguagem, com a qual Godard rompe desde a revolução da Nouvelle Vague e, mais especialmente, em seu último filme-estudo, “Adeus à Linguagem” (2014). Contudo, em “Imagem e Palavra” ele retorna ao signo para explorar outras potências visuais e também semânticas, através de uma complexa montagem de sons, cenas e textos.

Dividido em cinco seções, o longa é narrado pela própria voz cansada de Godard e se inicia pelos Remakes, com uma complexa composição que se estende por toda a trama, utilizando de cenas conhecidas da história do cinema que evidenciam as rimas e estruturas narrativas repetitivas que compõem a ficção, como as cenas (primeiro do cinema americano, depois com um exemplo francês) da discussão de um casal em que o jovem insiste em fazer a mulher assumir que sentiu falta dele.

Começar justamente pelo que compõe o receituário estabelecido do cinema ao redor do mundo e ao longo do tempo é o gatilho do cineasta para nos apresentar, através de subversões de imagens e disjunções da narrativa, o que o cinema ainda pode ser. A falta de linearidade de “Imagem e Palavra”, os cortes abruptos do áudio ou mesmo do filme e as recorrentes telas pretas ou anamorfoses que o diretor produz com as imagens de que se utiliza podem ser um desagrado para públicos mais acostumados com o padrão. Para aqueles que entendem que a imagem-movimento oferece potências ainda inexploradas, contudo, e que Godard é um dos poucos especialistas com a coragem de explorar esses territórios desconhecidos, o filme deve ser um deleite em seus planos mais inspirados, como alguns que se diluem nos glitchs e ruídos visuais até formarem uma espécie de quadro abstrato na tela de projeção.

Isso porque o diretor, mesmo com quase 90 anos, não se esquece de brincar. Com isso, não apenas seleciona e nos apresenta montagens engraçadas de cenas alteradas e remixadas que dialogam entre si, como também tece, numa segunda camada, uma tese imagética e, sobretudo, estética acerca do mundo moderno. Segundo o diretor, em entrevista em Cannes, “face ao caos e a direitização do mundo, só os filmes nos permitem manter viva a chama da esperança”. A citação, embora um tanto ufanista e apaixonada, não deve diminuir o tour de force de um realizador que há décadas vêm explorar o além-Cinema. É por isso que este filme, que começa com os remixes e repetições, termina com os ícones e questões do extremo oriente, reforçando sua posição crítica a políticas de xenofobia e imperialismo ocidentais.

Desde suas “Histórias de Cinema” (1999), Godard vem trabalhando com dedicação acadêmica sobre as potências da imagem. É, justamente por isso, um diretor interessado em todas as formas disponíveis para produzi-las. É assim que em filmes como “Imagem e Palavra” ele ousa combinar, de modo um tanto quanto caótico, mas que funciona no final, as capturas que ele mesmo realiza de forma quase amadora com uma câmera digital (imagens de flores num jardim, um take de seu cachorro…), com cenas em películas e até mesmo imagens em 3D, como já se viu em“Adeus à Linguagem”. São poucos os realizadores com tamanho fôlego. É impressionante vê-lo fazer isso incansavelmente há tantos anos. Assim, a torcida é para que ainda tenhamos outras reflexões imagéticas vindas daquela mente confusa e fascinante que há tantos anos permite ao Cinema pensar-se outra coisa.

Vinícius Volcof
@volcof

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