Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 08 de abril de 2019

The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia (1ª Temporada): horror contra as mulheres [SÉRIE]

Trama mostra um futuro em que um governo fundamentalista cristão, após golpe de Estado, muda a sociedade norte-americana tirando poder e escravizando o sexo feminino, seu bem mais precioso.

Filmes e séries têm o poder de contar histórias das mais diversas épocas, seja do passado ou imaginando um futuro moderno, cheio de tecnologias que trazem facilidades para o homem, ou uma realidade trágica onde a raça humana sofre com uma tecnologia ameaçadora que a ameaça de extinção. Na primeira temporada de “The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia” passamos a conhecer uma história de horror voltada principalmente contra as mulheres, repleta de cenas onde impera a violência simbólica, em um futuro próximo, em que o governo americano democrático deixa de existir.

Baseado no livro homônimo escrito pela canadense Margaret Atwood, a série produzida pela Hulu (serviço de streaming presente apenas nos EUA) conta a história da queda do comando dos EUA e consequente ascensão de uma nova forma de autoridade, a República de Gilead, uma espécie de administração cristã fundamentalista totalitária na qual o respeito às leis sagradas deve ser seguido acima de tudo. Sob os olhos de June Osborne (Elisabeth Moss, da série “Mad Men”), capturada ao tentar entrar no Canadá com seu marido e sua filha, vemos como essa nova sociedade nasceu e como ela funciona. Chamada agora de Offred, ela deve se sujeitar a esse governo totalitário ao lado de diversas mulheres férteis, que antes do declínio americano exerciam funções normais, como jornalistas, editoras, médicas e professoras. Ex-editora, ela acaba se tornando uma Aia, classe de mulheres mantidas com a única função de reprodução (um dos motivos da tomada de poder foram as quedas abruptas da taxa de natalidade). Esse problema, segundo os fundamentalistas, foi causado pelos elevados níveis de poluição e o comportamento permissivo da comunidade de então, regado a drogas e ao desrespeito a valores tradicionais. O sexo feminino se torna o bem mais valioso desse novo mundo, mas para isso é necessário o uso da força.

A violência, seja simbólica ou física, é fato constante na produção, a começar pela Cerimônia, ato em que o Comandante, alto funcionário de Gilead, pratica sexo com a Aia de maneira não consentida e na presença da sua esposa. Esse ato, caracterizado como uma forma de estupro, revela apenas um exemplo da força exercida sobre Offred e as outras Aias, uma vez que elas são forçadas a cumprir ordens sem ter espaço para o contraditório. A recusa em cumprir qualquer ordem leva a punições como castigos físicos, a perda de um olho ou o envio para as Colônias, campos de concentração em território contaminado onde o único futuro é a morte.

Yvonne Strahovski (“O Predador”) atua de forma incrível no papel de Serena Waterford, esposa do Comandante Walterford (Joseph Fiennes, “Ressurreição”), umas das responsáveis pelo novo regime com seu marido. Nesta nova realidade, ela se coloca em posição de submissão, esquecendo seu passado como escritora. Serena sonha em ter um filho, mas para isso deve contar com a “colaboração” de Offred. As cenas em que o Comandante Walterford tem relações com sua Aia, sob o olhar de Serena, são de um desconforto incrível para todos, transmitido com precisão pela montagem de cena, evocando o lado mais ambíguo e perverso desse novo regime político.

A força de “The Handmaid’s Tale” se dá principalmente a seu enredo envolvente. A forma como a história é contada intercala o antes e o depois da queda do governo, e se alia à ótima fotografia explorando o vermelho saturado das Aias em contraste com as cores sisudas e sem graça de Gilead. A montagem e a direção nos deixam curiosos para saber como os EUA puderam mudar de forma tão drástica e tão rápida. Como June, que até ontem era mãe e uma editora bem realizada, se transforma em uma escrava sexual sob o jugo de um regime totalitário? A mensagem aqui é clara: devemos ficar de olhos abertos o tempo todo para o que acontece em nossa volta, sob o risco de ver nossa liberdade tolhida do dia para a noite e perder o poder de protestar contra qualquer coisa. Aqui cabe uma crítica: onde estava o jornalismo, essencial em toda a democracia, que não noticiou as mudanças na sociedade americana? Nos flashbacks espalhados pela primeira temporada vemos que um dia June não podia mais ter dinheiro em conta corrente (só os maridos podiam ter), no outro ela foi demitida do trabalho (só homens podiam trabalhar), mais a frente ficou proibido protestar e depois já não se podia fazer mais nada, apenas servir a Gilead.

“The Handmaid’s Tale” é vencedora de diversos prêmios em 2017 e 2018. Em destaque para o Emmy de melhor série dramática em 2017, o Globo de Ouro também de série dramática em 2018 e o prêmio de melhor atriz para Elisabeth Moss nas mesmas premiações, que mostram a força da produção, atualíssima e responsável por levantar um debate necessário para os novos tempos. Criticando administrações autoritárias e a postura da sociedade em relação à mulher, a série consegue passar sua mensagem com clareza e peso suficiente para chocar quem a assiste. A experiência de ver, questionar e pensar em “O Conto da Aia” é, mais do que nunca, necessária.

Filipe Scotti
@filipescotti

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