Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 04 de março de 2019

Maligno (2019): risco assumido de uma mistura afoita

Buscando um resultado novo apesar de reutilizar elementos conhecidos, "Maligno" tenta a difícil combinação entre diversão e drama, mas encontra a trave nos dois chutes a gol.

Dentro do gênero do terror há um tipo conhecido de filmes que tratam de crianças estranhas, perversas, seja com um toque sobrenatural, como em “A Profecia” e “Colheita Maldita”, ou com raízes realistas, como em “Anjo Malvado” e “A Orfã”. A recorrência desse tema indica medos relacionados à infância ou à paternidade que o cinema de tempos em tempos volta a trabalhar. Em “Maligno”, uma criança começa a apresentar comportamentos perturbadores com possíveis causas paranormais, que são investigadas por seus pais.

O longa dirigido por Nicholas McCarthy (“Pesadelos do Passado”) abre com uma mulher fugindo de um cativeiro enquanto, em outra parte dos Estados Unidos, Sarah (Taylor Schilling, da série “Orange Is The New Black”) se prepara para ter seu primeiro filho. A polícia cerca a casa do sequestrador, Edward Scarka (Paul Fauteux, “Estranho Como o Amor”), e o mata a tiros no exato momento em que nasce o filho de Sarah, Miles (Jackson Robert Scott, “It: A Coisa”). Qualquer um que já tenha visto pelo menos um filme na vida conhece o “efeito Kuleshov” mesmo sem saber o nome. Ao associar o instante da morte de Scarka com o nascimento de Miles, a obra não deixa dúvidas: o bebê de Sarah e o falecido psicopata estão ligados de alguma forma.

Chama atenção o fato de que o trailer da regravação de “Brinquedo Assassino” foi lançado e exibido antes de “Maligno” nos cinemas norte-americanos. Lembra que Chucky, o antagonista do filme de 1988, é um boneco possuído por um assassino da mesma forma que Miles e Edward estão unidos no mesmo corpo. O suspense ao ver um boneco fazendo coisas “inesperadas” para um brinquedo inanimado é o mesmo de ver um menino de oito anos agindo como adulto, ambos personagens com aura infantil, intenções malignas e explicações sobrenaturais. Ao fazer uma babá caminhar no escuro e se machucar numa escada, Miles apresenta uma perversidade sádica semelhante a de Chucky. Proposital ou não, essa inspiração cinematográfica não é a única que o roteirista Jeff Buhler (“Cemitério Maldito”) inclui em sua história.

Miles possui heterocromia ocular, anomalia genética que deixa os olhos com duas cores diferentes. Esse elemento bizarro destaca o menino como um ser arrepiante, como as crianças de olhos brilhantes e cabelos cinzas do filme “A Cidade dos Amaldiçoados”. Sua inteligência é avançada para a idade – um menino “prodígio” como sugere o título original em inglês “The Prodigy” – fator que a princípio causa orgulho aos pais, mas logo acompanha casos de violência e agressividade que o levam para acompanhamento psicológico. Quando Sarah descobre que Miles fala obscenidades em dialeto húngaro enquanto dorme, a hipótese de que realmente há uma entidade tentando se apoderar de seu filho começa a fazer sentido. Os confrontos entre o “pequeno Scarka” e impotentes personagens que não podem fazer nada para desmascarar a criança são marcas registradas do subgênero. E para finalizar a sequência de referências, a trilha assobiada pelo vilão lembra demais o aterrorizante cântico infantil de “A Hora do Pesadelo”.

Apesar de reunir elementos conhecidos (e alguns bastante batidos) de outros filmes de terror, McCarthy os exercita muito bem e honra esse mérito. No entanto, o passo se torna maior que as pernas quando o longa também tenta ser um integrante da recente onda do pós-terror, que traz uma carga dramática raramente vista em tantas obras de um mesmo período, citando por exemplo produções como “Corra!”, “Hereditário” e “O Babadook”. Estes dois últimos possuem um forte paralelo com “Maligno” já que os três lidam com temores e dificuldades da maternidade. Sarah enfrenta uma questão moral sobre o que fazer quando não há tratamento para as atrocidades que o filho é capaz de cometer. Há também outros temas tangentes como abuso infantil, a pressão da sociedade sobre como educar os filhos, a ansiedade que acompanha a paternidade, mas para nenhum deles é dado um tratamento aprofundado.

“Maligno” promete ser um horror classicamente divertido e, ao mesmo tempo, dramaticamente contemporâneo, mas as duas propostas competem entre si e não alcançam o melhor de cada uma. Não é fácil realizar essa proeza. Quando uma obra consegue tal façanha, geralmente recebe aclamação universal, como aconteceu com “Corra!”. Pelo menos por tentar algo diferente, especialmente no terceiro ato da história, o filme merece a devida apreciação. Tanto por fãs de terror que hesitam frente à possibilidade de algo “mais do mesmo”, quanto por saudosistas buscando boas execuções de fórmulas antigas.

William Sousa
@williamsousa

Compartilhe