Cinema com Rapadura

OPINIÃO   domingo, 03 de março de 2019

Minha Fama de Mau (2019): qualidades irregulares

A trajetória de um dos ícones do Iê-iê-iê se inicia com uma narrativa de bom estilo, mas enfraquece suas qualidades ao longo da projeção.

As cinebiografias, geralmente, seguem a tradicional jornada da ascensão, glória e queda com uma estrutura narrativa de poucas inovações. Uma exceção é “Não Estou Lá” sobre Bob Dylan, por  propor um estilo muito particular para a história do músico norte-americano. Algo parecido é tentado por “Minha Fama de Mau” para contar a trajetória de Erasmo Carlos e da Jovem Guarda, através de um primeiro segmento que utiliza recursos não muito comuns ao subgênero. Porém, acaba sendo apenas uma tentativa em função do que se vê na metade final da obra.

Tudo se inicia em 1958, quando o jovem Erasmo (Chay Suede, de “Rasga Coração”) vive de pequenos trabalhos e sonha em ser cantor. Embalado pelo rock and roll, ele aprende a tocar violão e consegue se aproximar do apresentador Carlos Imperial (Bruno de Lucca, de “Os Parças“) e do cantor Roberto Carlos (Gabriel Leone, da minissérie “Onde Nascem os Fortes“). Essas parcerias transformam sua vida e o levam a concretizar o sonho. Ao abordar a Jovem Guarda, Erasmo, Roberto e Wanderléa (Malu Rodrigues, de “O Caseiro“), o filme retrata uma passagem artística brasileira ainda pouco vista no cinema e faz referência a elementos consagrados das décadas anteriores: os cantores Tim Maia e Wilson Simonal e canções como “Festa de Arromba” e “Minha Fama de Mau”.

Em seu início, a narrativa tem o tom compatível à personalidade do protagonista, um homem malandro, mulherengo e autoconfiante que se envolveu com pequenos golpes e diferentes empregos antes da fama. Nesses primeiros momentos, então, existe carisma e leveza expressos pela voz off, usada para narrar os acontecimentos pelo ponto de vista do personagem, e pela quebra da quarta parede, para construir uma identificação junto ao público. Os dois recursos se tornam uma novidade eficiente na cinebiografia, capazes de conferir dinamismo e estilo particular.

Nem todas as intervenções visuais do diretor Lui Farias (“Os Porralokinhas“), contudo, são bem sucedidas. A utilização de imagens de arquivo ajuda na ambientação histórica e no complemento de algumas cenas, como a reação do público nos shows e o trânsito da época em deslocamentos dos personagens, porém surgem sem propósito claro em muitas ocasiões, como as muitas exibições das ruas antigas do Rio de Janeiro. Além disso, há cartelas coloridas, grafismos e efeitos próprios dos quadrinhos que, ao invés de amplificar o dinamismo, apenas empilham técnicas por exibicionismo e sem função dramática.

Enquanto o arco principal se caracteriza pelo percurso de Erasmo Carlos rumo ao sucesso, a produção possui méritos e uma boa dose de diversão. Acompanhar sua origem simples, as transformações ocorridas a partir das primeiras composições escritas e a formação da Jovem Guarda rendem sequências envolventes e bem-humoradas, responsáveis por dar à narrativa um frescor interessante. Após mostrar a fama alcançada, o filme apresenta um declínio considerável por não saber que direção tomar para colocar o conflito dramático na jornada do artista. Dois problemas provocam essa queda de qualidade: o tratamento superficial e apressado às divergências dentro do grupo musical e a incapacidade de situar as críticas feitas no cenário artístico aos cantores do Iê-iê-iê. Os excessivos diálogos expositivos tentam consertar tais falhas, mas apenas as agravam ao não mostrar sequências que construam os conflitos.

Os equívocos da metade final também acontecem por conta da montagem confusa no estabelecimento da cronologia e do impacto de acontecimentos negativos em Erasmo Carlos: não é possível compreender a passagem do tempo nem até que período a trama chega, assim como sentir o gradual ostracismo de um artista engolido pelas mudanças na arte. Nem mesmo a estética específica sobrevive ou se desenvolve, já que o cineasta abandona os recursos usados anteriormente e não extrai as potencialidades da narração em off e da quebra da quarta parede para a queda do personagem.

As irregularidades existentes ao longo da projeção também afetam as interpretações do elenco. Malu Rodrigues não possui material nem espaço para desenvolver Wanderléa, a artista menos enfocada pelo filme, e Gabriel Leone oferece apenas uma boa composição física de Roberto Carlos (trejeitos corporais e vocais reconhecíveis sem serem caricaturais), uma vez que o cantor não tem sua personalidade apresentada. Já Chay Suede tem uma performance melhor no início da projeção, quando convence como um homem confiante em sua própria imagem e talento (o trabalho vocal que não precisa ser de um cantor profissional dada às próprias características do artista encenado, além dos trejeitos de levantar a gola da camisa e arrumar o cabelo a todo instante); ao longo da narrativa, entretanto, os problemas narrativos e estéticos não oferece ao ator outras camadas dramáticas e possibilidades interpretativas.

“Minha Fama de Mau” tem o duplo desafio de agradar aos fãs da Jovem Guarda e, ao mesmo tempo, conceber uma narrativa sólida para qualquer espectador. É possível que, ao final de suas quase duas horas, os fãs possam sentir sua nostalgia saudada pelas canções ou demais referências familiares, porém não é algo que o sustente como um bom filme. Apesar de ter um início promissor, a falta de continuidade de suas qualidades acaba sendo seu maior defeito.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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