Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Minding the Gap (2018): simples proposta, potente documentário

Acompanhando o cotidiano (e as manobras) de três jovens skatistas (incluindo o próprio diretor), o filme retrata uma geração em desalento com dolorosas feridas em comum.

Num relance de olhos, “Minding the Gap” parece ser um leve e espirituoso documentário sobre jovens skatistas e seus estilos de vida. Um deles, Bing Liu, é o próprio responsável pelo projeto de acompanhar o dia a dia dos seus amigos, Zack Mulligan e Kiere Johnson, enquanto refletem sobre as dificuldades de dar o “salto” para a fase adulta. Em sua concepção, a obra iniciou como um vídeo experimental em torno do esporte que os três rapazes tanto amam, mas o cineasta transformou seu filme num raro, íntimo e poderoso retrato sobre amadurecimento, além de um relato emocionalmente devastador sobre os impactos da violência doméstica.

O diretor tinha apenas vinte e poucos anos anos quando finalizou as gravações realizadas entre um trabalho e outro como assistente em grandes produções como “Sense8”, “Divergente” e “O Destino de Júpiter”. No entanto, desde a adolescência ele já tinha o hábito de exercer a paixão pela câmera e pelo skate registrando o esporte com os amigos. Parte das imagens do documentário constrói esse passado recente, quando não havia outras preocupações além de mandar bem nas manobras. Sem dúvida há algo transgressor na prática de skate ao andarem por ambientes proibidos, arriscando fraturas e machucados pelo prazer da liberdade. Sentimento esse que muda com os compromissos adultos, especialmente para Zack, que além de lidar com as responsabilidades de buscar emprego como Keire, tem a paternidade acidental batendo a porta.

Os três amigos cresceram humildemente em Rockfort, EUA. Zack trabalha subindo em telhados e escapa das preocupações bebendo cervejas e, é claro, andando de skate. Como uma forma de defesa por não demonstrar coragem para tomar decisões e direcionar a vida, ele reclama das expectativas que são projetadas a jovens como ele. Já Keire é mais preocupado com o futuro. Com um simpático sorriso sempre a postos para agradar, ele acompanha atento o caminho dos colegas para seguir o seu, ciente que infelizmente sua cor é uma desvantagem numa sociedade que ainda vive o racismo. Bing não reserva o mesmo espaço no filme para si, mas permite que sua personalidade também seja assunto dos depoimentos com colegas e familiares, afinal ele é a própria câmera do seu cinema direto – ou vérité. Os comentários sociais são pontuados sutilmente por mensagens publicitárias em outdoors, e outras cenas e notícias da cidade, que servem também como transições para as passagens de tempo, num estilo “Boyhood” da dura vida real.

Sem a distração de uma equipe técnica e sendo amigo próximo de Zack e Keire, Bing consegue uma intimidade extraordinária, capturando confissões e pensamentos que dificilmente seriam possíveis de outra forma. A maior proeza do jovem cineasta talvez seja ter conseguido desenvolver uma história pessoal dentro da própria história, algo como a documentarista Kirsten Johnson fez no seu “Cameraperson”, aqui em escopo menor, mas não menos poderoso. No caso, é um fantasma que aparece devagar e que une os três amigos além da paixão pelo skate: o ciclo da violência doméstica. Ao desabafar que nada lhe é mais amedrontador que sua infância, Keire revela uma história não resolvida de abusos pelo falecido pai. Por uma infeliz casualidade, Bing consegue flagrar as sombras de tal problema social pairando sobre o relacionamento de Zack, dessa vez com o amigo como perpetrador. E aproveitando a oportunidade para confrontar o passado, o diretor entrevista o irmão e sua mãe sobre os atos condenáveis do padrasto.

O assunto da violência doméstica surge inesperadamente e carrega o fio comovente do documentário, ao mesmo tempo que compõe um retrato ambiguamente desalentador e esperançoso sobre como amadurecer numa cidade sofrida pela falta de perspectivas. O espectador que decide ver “Minding the Gap” de peito aberto desprevenido, achando ser “só” um documentário sobre skatistas, encontra um excepcional flagrante de intimidade e vulnerabilidade capaz de arrancar lágrimas direto do coração, e também um impressionante resultado de perícia técnica e maestria pelo olhar exclusivo de um dedicado e promissor (e ridiculamente jovem) cineasta.

William Sousa
@williamsousa

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