Cinema com Rapadura

OPINIÃO   sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Fevereiros (2017): brasileiríssimo

Santos e deuses se encontram na Abelha Rainha, numa histórica graficamente impecável, e narrativamente poderosa.

Filha de dona Canô e também de Iansã, Rainha dos raios, recôncavo do reconvexo Caetano, Maria Bethânia é uma das principais interpretes da música brasileira. De “Carcará”, quando ainda era uma garota, a “Santo Amaro e Xerém”, em que atualmente divide o palco com o sambista Zeca Pagodinho, a voz de trovão sereno de Bethânia é uma dessas bênçãos que vem desta terra em que nascemos. A talentosíssima personalidade é o destaque deste “Fevereiros“.

O artista multimídia Marcio Debellian, que já havia trabalhado com a cantora no filme-poesia “O Vento Lá Fora” (2014), empreende nesse longa-documentário o esforço de capturar a aura mística de Bethânia em dois momentos de sublimação: a procissão católica de Santo Amaro, cidade natal da cantora, e o desfile da escola de samba Mangueira, no Rio de Janeiro, realizado em sua homenagem. O primeiro é mais intimista e retrata a relação da artista com a cidade, com a família e a devoção religiosa que se conclui com o êxtase de ter a procissão (católica, mas intensamente sincrética) passando em frente à sua casa, em pleno dia de Iemanjá. A segunda, mais extática, joga louros a uma cantora de ressonância perturbadora e luz ofuscante, a quem é dada Apoteose no final da passarela do samba carioca, onde ganha o Carnaval do ano de 2016.

Fotografias impecáveis e a intercalação de cenas de arquivo e outras mais recentes – e também certo estilismo visual, produzido pelo uso de câmeras analógicas – fazem com o documentário também seja um deleite visual – sobre o prazer musical, basta dizer que o filme é embalado com algumas das melhores canções da cantora, como “Yayá Massemba”. As cores do galpão da Verde e Rosa e das celebrações do Recôncavo ajudam o diretor e seus fotógrafos, Miguel Vassy e Pedro Von Krueger, a construírem o espetáculo visual, mas é Bethânia quem alumia a tela e dá vida à narrativa.

A devoção sincrética da artista, seu jeito menina sem deixar de ser poeta, figura milenar vinda da própria mãe terra e filha dos raios, preenche essa história com o peso que ela tem: da mitologia dos deuses. “Fevereiros” é, justamente por isso, tanto uma espécie de cinebiografia – como outras já se fizeram da cantora, como “Pedrinha de Aruanda” (2006), dirigido por Andrucha Waddington – como também um retrato da fé brasileira, da mitologia híbrida, sincrética e poderosa de nosso povo. Acompanhando a história e o espírito de Bethânia, assim como de seus amigos Doces Bárbaros, a obra faz pensar o quanto a Bahia é mesmo abençoada.

Vinícius Volcof
@volcof

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