Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Vingança (2018): thriller autoral, feminino e encharcado de sangue

Contra as expectativas de mais um filme de "estupro e vingança", o longa é um excelente exercício artístico de suspense nervoso e angustiante com uma rara pegada feminista.

Prepare o estômago e deixe um pano preparado para limpar o sangue que vai escorrer pela tela. O primeiro longa da francesa Coralie Fargeat desafia a resistência humana para contar uma história já bastante explorada no cinema, mas poucas vezes tão bem realizada quanto em “Vingança”. O controverso tema do estupro é o mote central regido com sensibilidade feminista, dividindo espaço entre comentário social e uma selvagem luta por sobrevivência contra os bárbaros agressores num violento jogo de gata e ratos.

Jen (Matilda Lutz, “O Chamado 3”) é uma linda mulher com um jeitinho jovial caracterizado pelo pequeno corpo, pirulitos e uma certa inocência, como a polêmica Lolita de Vladimir Nabokov. Ela faz o estilo “Barbie e Ken” com seu namorado Richard (Kevin Janssens, “D’Ardennen”) ao chegar numa suntuosa mansão isolada no meio de uma paisagem desértica onde só se pode ir de helicóptero. Problema nenhum para o bonitão milionário, que só não é melhor porque é casado, mas Jen não se importa com esse mero detalhe em troca de todo o luxo e prazer que ele proporciona. Para Richard, o motivo da viagem é se encontrar com dois amigos para caçar, mas antes de mandar Jen de volta para a cidade, Stan (Vincent Colombe, “À Queima Roupa”) e Dmitri (Guillaume Bouchède, “Uma Família de Dois”) chegam um dia mais cedo que o previsto.

A noite inesperada entre quatro pessoas é regada a bebidas e danças à beira da piscina. A câmera de Coralie busca detalhes sensuais de Jen, objetificando seu corpo pelos olhos devoradores dos amigos de Richard. Essa é a raiz da pincelada crítica do filme, que mostra como o senso de posse doente desses homens cresce ao equivocadamente interpretar o jeito da protagonista como convite ao sexo. No dia seguinte, Stan aproveita uma saída de Richard para atacar Jen sob o olhar desdenhoso de Dmitri, afinal “ela estava pedindo por isso”. Estupros são sempre perturbadores, mas a perspectiva feminina de Fargeat evita prolongar o ato, que não se torna menos incômodo pelo som e mise-en-scène da diretora ao incluir o volume alto de uma televisão e o mastigar de uma barra de chocolate. O auge da violência contra Jen ainda está por vir.

Quando Richard retorna e descobre o que o amigo fez, ele oferece dinheiro à namorada para ficar calada, que não aceita e tenta escapar. Os homens então a perseguem e a empurram de um penhasco para a morte certa como garantia de impunidade. No entanto, para fazer jus ao título do filme, Jen sobrevive e renasce como uma fênix após remover um fálico galho de seu corpo, duas metáforas óbvias, mas alinhadas com o novo tom de “Vingança”. Sem forças e desarmada, mas com o fator surpresa contra os experientes caçadores, a heroína busca eliminar os algozes num puro instinto “ou eu ou eles” e dá as oportunidades para o longa ostentar seus atributos técnicos.

A fotografia do empoeirado deserto realça as cores do filme contra a chamativa estrela rosa neon do brinco de Jen e o vermelho do sangue derramado aos litros, e cujas gotas soam como explosões ao cair sobre uma formiga, num exemplo do estilizado desenho de som que acentua o desconforto dos ferimentos contra a carne humana. Uma simples cena em que Stan tenta tirar um caco de vidro de seu pé é uma verdadeira tortura psicológica e lembra que os elementos de gênero da obra a posicionam no centro do movimento conhecido como “Novo Extremismo Francês”.

Também é interessante notar como a dinâmica em torno do corpo da protagonista muda, da mulher objeto da introdução para uma guerreira feroz e exploradora como a Lara Croft de “Tomb Raider”. A nudez como misto de vulnerabilidade, beleza e animalidade também tem um papel simbólico até o sangrento confronto final, abençoado por Diti, a vingativa deusa da mitologia indiana pintada num dos quadros em destaque na mansão de Richard. Manejando todos esses componentes artísticos para criar um sólido e violento suspense autoral, Coralie Fargeat dribla as armadilhas do sensível tema e entrega um dos melhores filmes já produzidos do subgênero “estupro e vingança”.

William Sousa
@williamsousa

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