Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Você (Netflix, 1ª Temporada): a pior forma de amor [SÉRIE]

Novo hit da Netflix investe em uma narrativa sedutora e muitas carinhas bonitas para discutir os perigos de um amor tóxico nos tempos da tecnologia.

Lançada pelo Lifetime (emissora de TV dos Estados Unidos), Você passou despercebida no canal e logo foi cancelada. A Netflix decidiu então comprar os direitos da série, que surpreendentemente se tornou um fenômeno assistido por mais de 40 milhões de pessoas, segundo uma rara divulgação de números do serviço de streaming. Acontece que a Netflix deu apenas um empurrãozinho para um produto que estava destinado a se transformar em mais um hit da companhia. O motivo? Um roteiro absolutamente magnético, um protagonista muito carismático, coadjuvantes simpáticos e temáticas atuais que, mesmo ganhando um frescor de romance, advertem sobre os perigos das internet e a linha tênue entre o amor e a obsessão.

Baseada no romance homônimo de Caroline Kepnes, “Você” conta a história de Joe Goldberg (Penn Badgley, da série “Gossip Girl”), o gerente de uma pequena livraria no centro de Nova York que usa todo o seu charme e o seu know-how em internet para fazer com que a bela e aspirante a escritora Guinevere Beck (Elizabeth Lail, da série “Lista Negra”) se apaixone e entenda que ele é o cara certo para ela. Pode-se dizer que a série é o fruto perfeito da junção de mentes acostumadas ao crime, suspense e romance, o que confere a ela um equilíbrio preciso quando visto na prática.

Joe “O Stalker” Goldberg

Só uma mistura dessas poderiam resultar em algo tão intrigante. Bom, a essa altura do campeonato você já deve saber que o protagonista não é bem um príncipe encantado. Tudo bem que o argumento da série o coloca para lavar a roupa da amada, preparar um café da manhã peculiar, e falar coisas bonitas o tempo todo para levantar a autoestima da companheira. Soma-se a isso o fato de Joe trabalhar numa livraria, onde muitos contos de fadas são vendidos. O problema é que o cara que não foi pra faculdade (só assistindo para saber o por quê), tem como livros de cabeceira O Médico e O Monstro, O Conde de Monte Cristo, Frankenstein e os Três Mosqueteiros, e soube tirar de cada uma dessas obras os piores exemplos. Recorrer a Stephen King a fim de solucionar problemas também é, no mínimo, estranho.

Nosso “querido” Joe tem assim sua personalidade moldada pelo cavalheirismo, mas também por atos de vingança, paixão obsessiva, a eterna busca pelo perfeito etc. Com o passar dos episódios, o público irá perceber que o lugar administrado por ele é um personagem quase metalinguístico nessa narrativa, resultando em uma porção de referências legais. Outra escolha notável é a forma como conduz a narração: o voice over irresistível do próprio Joe o torna uma figura onisciente de tudo o que acontece, e a série ganha em encanto. Uma escolha acertada, que por vezes pode representar um perigo caso o espectador não entenda “Você” como um entretenimento. Contudo, é sempre bom ressaltar que mesmo a temática sendo um retrato da realidade cruel de hoje, não podemos esquecer que se trata de ficção e maioria das ações são pensadas em prol da diversão.

Beck e suas amigas

Guinevere Beck é o espelho da garota com muitos sonhos – e inúmeros problemas. Almeja ser escritora, mas o processo de escrita é regularmente travado pela vontade em provar-se expressiva nas redes sociais, enquanto, na verdade, vive uma vida de perrengues e cheia de conflitos internos. Tem dificuldades para mostrar suas garras e enfrentar a vida. A predileção por livros e histórias a põe como sendo um alvo fácil para o perspicaz e oportunista Joe. Ademais, Beck é uma personagem fácil de se apaixonar; no entanto, o efeito só é possível graças ao modo como sua intérprete a constrói. Elizabeth Lail evoca inocência, inconsequência e muita simpatia, o que, aliado a sua beleza, a coloca à altura do companheiro de cena. Quando exigida em cenas mais dramáticas, Lail mostra-se firme e competente.

Contudo, existem outros pilares que a sustentam ao longo da série e deixam a jornada bem mais fascinante. As super-amigas ricas Annika (Kathryn Gallagher), Lynn (Nicole Kang) e Peach (Shay Mitchell, “Cadáver”) se revelam peças fundamentais nesse jogo. Todas vivem de aparência, porém, seus distúrbios são evidentes e servem para abrir possibilidades para o desenrolar da narrativa, proporcionando um peso dramático considerável a ela. Todas tem sua graça e o momento de aparecer, só que a mais relevante acaba sendo Peach Salinger – figura perturbada e submersa em questões mal resolvidas, acaba oferecendo o dobro de intrigas e confrontos, a julgar sua proximidade com Beck.

Ron, Claudia e Paco

Esse trio de coadjuvantes é talvez o elemento mais controverso da narrativa. Paco (Luca Padovan, da série “Crazy Ex-Girlfriend”), por exemplo, não faz parte do livro original, e sua adição à série é um dos principais motivos que fazem de Joe menos terrível – se é que isso seja possível. A relação dos dois é sincera, e para completar, ambos compartilham dramas parecidos. O menino, que vive no meio de um relacionamento tóxico entre sua mãe drogada (Victoria Cartagena, da série “Gotham”) e o padrasto que a agride (Daniel Cosgrove, da série “Billions”), relembra ao rapaz (através de flashbacks pontuais) as memórias de uma infância nada feliz com os pais e o dono da livraria, Ivan Mooney (Mark Blum, da série “Mozart in the Jungle”). Nessas horas, o roteiro habilmente joga o público numa armadilha que o faz sentir pena de Joe, mas na sequência volta-se a realidade com as loucuras dele.

Veredito

Uma série depende muito de seus personagens para seguir em frente, entretanto, não teria o mesmo sucesso caso não fosse bem dirigida. Para não haver discussões sobre o nível elevado de abuso e machismo, os primeiros cinco episódios, por exemplo, são comandados por mulheres, o que diz muito sobre as intenções de “Você”. Ao longo de 10 capítulos bem estruturados e com um texto afiado, o público pode sentir o ritmo fluindo e a consistência de cada episódio. Todos são ótimos e imprevisíveis, mantendo o espectador engajado em devorá-los até o final e quem sabe rever com o mesmo ânimo e prazer da primeira vez. Não fique preocupado se ao final se perguntar se “é aceitável admirar um personagem mesmo reprovando suas ações?” Sim, essa é a mágica de algo bem realizado e prova do triunfo. Aguardemos o que virá na próxima temporada.

Renato Caliman
@renato_caliman

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