Cinema com Rapadura

OPINIÃO   terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Guerra Fria (2018): romântica jornada por tempos sombrios

A ausência de cores e o estreito quadro realçam uma história de paixão entre dois amantes incompatíveis, mas destinados a ficar juntos no pós-guerra europeu.

O diretor polonês Paweł Pawlikowski (“Meu Amor de Verão”) traz uma nova obra às telas após o sucesso do premiado “Ida” de 2014. Em “Guerra Fria”, o também roteirista conta a história de um conturbado relacionamento entre um diretor musical e uma jovem cantora numa Europa em transformação ao longo dos anos pós-Segunda Guerra Mundial. Assim como em “Ida”, Pawel utiliza a velha proporção de tela reduzida além do preto e branco para evocar a essência dos filmes deste período da história.

Wiktor (Tomasz Kot, “A Arte de Amar”) é um talentoso músico com uma ideia apaixonada na cabeça. Ao lado da desconfiada Irena (Agata Kulesza, “Ida”) e do pragmático Kaczmarek (Borys Szyc, “Rastros”), ele viaja pelo interior destruído da gélida Polônia de 1949 buscando cânticos folclóricos entoados por um povo desolado. Seu objetivo é recuperar as reminiscências culturais do país montando uma grande trupe de dançarinos e cantores para expor com orgulho a autêntica arte popular. Durante as audições, ele conhece a misteriosa Zula (Joanna Kulig, “João e Maria: Caçadores de Bruxas”), que não parece ser a camponesa que esperam, mas logo se torna uma das estrelas da produção.

A decisão de Pawlikowski por gravar “Guerra Fria” em formato digital, mas mantendo a estética da ausência de cores, imprime uma textura especial às imagens de contraste acentuado para marcar o romance conflituoso entre Wiktor e Zula. Quando o sucesso da trupe chama a atenção dos novos líderes políticos sob influência dos soviéticos, que “sugerem” modificar o repertório para incluir canções que exaltem líderes e reformas, o grupo viaja em turnê para a Alemanha Oriental e, num movimento de fuga à laCasablanca”, o descontente músico pede que sua paixão o acompanhe para o outro lado da Cortina de Ferro.

Em sucessivos encontros e desencontros ao longo de mais de uma década, o casal percorre diferentes fases de vida por recortes enxutos. A cada bloco de tempo narrado, o tom do filme muda discretamente acompanhando nuances estéticas no enquadramento do diretor de fotografia Lukasz Zal (de “Ida” e “Com Amor, Van Gogh”). Os diferentes arranjos musicais para as mesmas canções folclóricas pontuam cada capítulo refletindo mudanças não só sonoras, mas nos estágios emocionais dos protagonistas. As transições entre os saltos temporais também são marcadas por um silêncio contemplativo, como retratos que marcam a retina enquanto o espectador imagina e se pergunta o que aconteceu durante o período não mostrado, usando como referência principal as fortes expressões dos ótimos Tomasz Kot e Joanna Kulig para intuir sobre a evolução de seus personagens.

Para compensar os desafios da janela estreita, é comum o diretor lançar mão de espelhos na mesma direção da câmera, que por sua vez é colocada com frequência levemente acima da linha dos olhos. Dessa forma, a percepção do mundo do filme se amplia ao modificar a composição dos elementos visuais para mostrar o máximo da perspectiva dos personagens, alternando confinamento e liberdade pelas trajetórias tumultuosas de Wiktor e Zula, que foram inspiradas livremente pela história dos pais de Pawel Pawlikowski.

Como uma homenagem a seus progenitores e em defesa da tese de que “o tempo não importa quando se está apaixonado”, Pawlikowski traça um romântico conto através dos anos de conflito político europeu, quase tão agitados e ferventes quanto o casal protagonista. “Guerra Fria” é uma obra visualmente espetacular desenhada sobre um roteiro incomum e desconcertante, e que solidifica a marca do diretor polonês no cinema do século XXI.

William Sousa
@williamsousa

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