Cinema com Rapadura

OPINIÃO   segunda-feira, 07 de janeiro de 2019

Green Book – O Guia (2018): humor e drama em ótimo equilíbrio

Viggo Mortensen e Mahershala Ali lideram um road movie histórico e inspirador que desafia o caráter de seus personagens por uma região perigosa e hostil dos EUA.

Nova York, 1962. Tony Vallelonga (Viggo Mortensen, “Capitão Fantástico”) trabalha como segurança na famosa boate Copacabana, a mesma da canção de Barry Manilow e do lendário plano-sequência de “Os Bons Companheiros”. A herança italiana do encrenqueiro Tony se percebe no sotaque, no jeitão de falar e na família estendida por pessoas que entram e saem da casa em que mora com sua esposa Dolores (Linda Cardellini, “Um Pequeno Favor”). Seus amigos o chamam de Tony “Lábia” (em tradução livre do inglês “Lip”) pela maneira que ele consegue o que quer na conversa. Mas quando precisa, ele não hesita em usar a força necessária para resolver conflitos. O bom de boca e violento nos punhos é protagonista de “Green Book – O Guia” dividindo a tela com o brilhante Mahershala Ali (“Moonlight”) como o pianista Dr. Don Shirley.

O multitalentoso Shirley se intitula “doutor” pelos diplomas que conseguiu e não duvida nem por um momento de sua genialidade musical. Prestes a entrar em turnê nacional com o “Don Shirley Trio”, o fino e disciplinado artista precisa de alguém que o leve de carro do norte aos estados do sul, sabendo que as leis e hábitos preconceituosos sulistas significam alto risco para negros como o doutor poliglota. Com o fechamento temporário do Copacabana, oportunidade e necessidade fazem com que Tony se apresente para o cargo de motorista conseguido pela sua conhecida “habilidade inata para lidar com problemas”. “Green Book – O Guia” se torna então um road movie à laConduzindo Miss Daisy” às avessas, já que o brutamontes também tem seu punhado de atitudes racistas e insensíveis. A propósito, o “livro verde” do título era como se conhecia um guia de viagem para negros em tempos de segregação e violência velada nos Estados Unidos.

O roteiro co-escrito pelo filho de Vallelonga, baseado em entrevistas e cartas do pai, deixa claros os desafios e o fim da jornada antes de acompanhar a dupla no Cadillac turquesa em direção ao problemático sul. Como todo bom clássico, após estabelecer o ponto de partida das personalidades duras e teimosas dos protagonistas, espera-se que os obstáculos do caminho provoquem em Tony e Shirley mudanças internas e de atitudes. Ao confrontar a rudeza quase infantil do motorista com a finesse do músico e tendo o olhar de Viggo como protagonista, poderia se esperar uma comédia de transformação como na peça “Pigmalião”, em que o bruto mal-educado se torna uma pessoa melhor pelo seu mentor. Porém, o que se destaca no encontro entre os dois opostos é a transformação do personagem de Mahershala. Aos poucos, sua fragilidade fica exposta às hostilidades que enfrentam pela turnê, permitindo ao ator momentos dignos de prêmios.

Sobre o tema racial, “Green Book – O Guia” é um simples filme que não se encharca pelas possibilidades de drama sobre as dinâmicas sociais norte-americanas e prefere investir nas situações de inversão cultural entre Tony e Shirley no lugar de afundar dedos em feridas. Dessa forma, a obra procura agradar a um grande público com um drama bem-intencionado apesar de talvez não problematizar devidamente o contexto histórico real. Em relação ao potencial dramático, o longa é surpreendentemente dirigido por Peter Farrelly, que antes só era conhecido por realizar comédias pastelão com o irmão Bobby como “Debi & Lóide – Dois Idiotas em Apuros”, “Quem Vai Ficar Com Mary?” e “Antes Só do que Mal Casado”. É claro que seu toque de humor ainda está presente, em especial, nas atitudes e no texto de Mortensen.

Apesar de definidos inicialmente como opostos, Tony “Lip” e o Dr. Don Shirley compartilham um senso forte de integridade que também se prova como ponto fraco de ambos, pois não ajuda a afastar os problemas do caminho da dupla. Após os esperados testes e provações, o arco de ambos se fecha convenientemente conforme prometido pelas preparações do primeiro ato, mas a previsibilidade não significa que a jornada não seja satisfatória, profunda e emocionante. “Green Book – O Guia” entrega uma forte mensagem por ótimas atuações e uma divertida história desviando de polêmicas e equilibrando humor e drama com excelência.

William Sousa
@williamsousa

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