Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 09 de janeiro de 2019

Tungstênio (2018): estilo sem moderação

Ao não considerar com cuidado as diferenças de linguagem entre cinema e HQ, o filme apresenta resultados narrativos díspares que o tornam uma experiência mediana e insuficiente.

Heitor Dhalia costuma utilizar obras literárias como fonte original de seus filmes. Foi assim, por exemplo, com “Nina“, adaptação de um livro de Dostoiévski, e “O Cheiro do Ralo”, de um livro de Lourenço Mutarelli. Seguindo esse costume, o diretor levou às telas “Tungstênio“, originalmente uma HQ escrita por Marcello Quintanilha. Seu mais recente trabalho busca replicar a linguagem dos quadrinhos para o cinema, porém apresenta resultados instáveis: tem, simultaneamente, um estilo visual muito marcante e um ineficaz desenvolvimento de temas e personagens.

A trama do filme parte de um crime ambiental (o uso de explosivos para a pesca na orla de Salvador) para seguir quatro personagens: o sargento aposentado Ney (José Dumont, de “Dois Filhos de Francisco”), que se indigna com a falta de ordem e respeito dos moradores locais; o jovem traficante Caju (o estreante Wesley Guimarães), que só pensa em aproveitar a vida; e o casal Richard (Fabrício Boliveira, de “Faroeste Caboclo“) e Keila (a também estreante Samira Carvalho), que vivem em pé de guerra em uma relação conturbada. Tudo se inicia quando Caju, forçado por Ney, chama o policial Richard para prender dois pescadores.

O que mais se destaca, à primeira vista, é o aspecto técnico muito particular, em especial a fotografia. São utilizados cores muito vibrantes e saturadas, planos inclinados, contra-plongée no posicionamento da câmera (voltado de baixo para cima) e grandes-angulares (tipo de lente que distorce a lateral da imagem e retira o foco do que não está em primeiro plano). Tais escolhas têm como objetivo ressaltar a instabilidade emocional dos personagens, porém acabam levando a duas desvantagens: a ambientação do litoral baiano é desperdiçada e a abordagem do tema das desigualdades sociais é subvalorizada. Apesar de, inicialmente, causar estranhamento, o recurso tem seu valor estético, como se observa na sequência da luta na praia.

A desvantagem provocada pelo tipo de fotografia atinge o desenvolvimento dos temas do roteiro. Em teoria, seriam trabalhadas questões como desigualdade social, racismo, relações sociais e amorosas conflituosas, militarismo e truculência policial. Contudo, elas são apenas apresentadas e não aprofundadas por uma narrativa que falha em intercalar os problemas sociais da cidade e as complicações afetivas dos personagens. As fragilidades temáticas não são resultantes da breve duração da obra, mas sim, da falta de aprofundamento do roteiro e da direção apressada em pontuar tantos assuntos.

Esse problema também impacta nas atuações do elenco de “Tungstênio”. José Dumont, Fabrício Boliveira e Samira Carvalho vivem personagens que não possuem muita complexidade nem diferentes camadas (por conta da ausência de nuances que justifiquem as diferentes atitudes tomadas, os atores acabam sofrendo com o overacting). Além disso, os arcos dos personagens também são prejudicados: Ney é um ex-sargento, autoritário e que não tem seu lado solitário tão bem trabalhado; e a instabilidade nas relações do casal formado por Richard e Keila não é bem explicada. Somente Caju possui uma trajetória mais consistente, marcada por uma espiral de acontecimentos negativos após se envolver com o caso da explosão de peixes na orla – dessa forma, Wesley Guimarães entrega um desempenho eficiente.

A direção de Heitor Dhalia segue o mesmo intuito de homenagear a HQ de Marcello Quintanilha, através de muitos closes, enquadramentos que emulam o material original, e freeze frames (planos que congelam a imagem para criar suspense). Outros recursos utilizados, em sintonia com a montagem, são a narração em off de Milhem Cortaz (“Intimidade Entre Estranhos”) com comentários sarcásticos sobre os eventos exibidos e a inserção de flashbacks e flashforwards, que mostram diferentes pontos de vista das mesmas situações. Esses dois aspectos, entretanto, também criam prejuízos para a narrativa: a narração está excessivamente presente e verbaliza demais o que deveria ser mostrado através de imagens; já os saltos temporais são colocados em demasia e em momentos inoportunos, como acontece, por exemplo, nas sequências de brigas entre Richard e Keila.

Considerando as escolhas narrativas e estéticas de “Tungstênio”, o esforço tão grande para replicar com fidelidade a história em quadrinhos afeta a experiência cinematográfica. Ao colocar na balança suas virtudes e seus problemas, o filme acaba se revelando mediano e sem a força necessária para trabalhar os temas definidos. Esteticamente tem identidade própria, mas peca na forma como a distribui ao longo da narrativa; e tematicamente, reúne assuntos importantes, mas não os desenvolve com intensidade.

Ygor Pires
@YgorPiresM

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