Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 09 de janeiro de 2019

As Boas Maneiras (2017): aterrorizante fábula do cinema nacional

Mais uma obra assinada por Juliana Rojas e Marcos Dutra, o longa traz uma fantástica história sobre duas mulheres e um pequeno segredo apavorante.

“Se tiver medo, chama meu nome. Dorme, meu filhinho, que é pra não ficar com fome”. Esses são alguns dos versos da canção de ninar que Ana (Marjorie Estiano, “Sob Pressão”) pretende cantar para seu filho quando ele nascer. Sozinha num grande apartamento de um bairro chique e futurista de São Paulo, ela procura uma pessoa para ajudá-la na casa até que encontra Clara (Isabél Zuaa, “Joaquim”), uma enfermeira desencantada buscando alguma renda para pagar as dívidas. “As Boas Maneiras” é uma fábula de horror sobre o resultado do encontro das duas mulheres e uma criança sobrenatural.

A estranheza desse conto é introduzida pela peculiar trilha sonora já nos créditos iniciais. A arte dos títulos chama atenção para a natureza fantasiosa da história e para a ambientação do apartamento de Ana. Objetos como bustos de animais e uma caixinha de música remetem à origem abastada e à juventude da personagem de Marjorie numa fazenda do interior. Ostracizada por amigos e família, o motivo do seu isolamento está em seu ventre, uma criança que ela decidiu criar sozinha. Pelo menos até as dores da gestação a levarem a contratar a sisuda, porém habilidosa, Clara. Moradora da periferia, a moça não tem experiência, muito menos referências como cuidadora, mas Ana confia em suas mãos e abre as portas do lar para a enfermeira.

À medida que a gravidez progride, o clima ao redor do apartamento se torna mais sombrio e sinistro. Nas noites de lua cheia, Ana começa a sofrer de sonambulismo agravado pela dieta sem carnes recomendada pelo médico. Seus impulsos carnívoros alcançam limites extremos flagrados por Clara que, por compaixão à história trágica de Ana e sua misteriosa concepção, decide ajudá-la às últimas consequências. Uma coisa pode ser dita pela mitologia deixada sem ambiguidades na narrativa: a criança a nascer não é exatamente humana, mas Clara está disposta a fazer o que estiver ao seu alcance para protegê-la.

A evolução do relacionamento entre as mulheres é central para o início do filme, mas logo depois a obra de Juliana Rojas e Marcos Dutra deixa o contemplativo e dá uma guinada para outra direção. É possível traçar um paralelo entre o suspense doméstico da primeira parte de “As Boas Maneiras” com o clima de tensão criado por Dutra em seu outro filme de horror “Quando Eu Era Vivo”. Da mesma forma, o toque musical marcante na segunda parte do longa conversa com a obra anterior de Juliana, “Sinfonia da Necrópole”. Apesar da distinção no estilo dos dois momentos da história, o horror continua sendo margeado com eficácia, só que por um novo, interessante e surpreendente ângulo.

Tentar costurar uma relação entre as duas partes do conto que não seja uma simples causa-consequência, ou introdução e desfecho, requer entender seus personagens principais como pessoas cujas condições não são bem-vindas pela sociedade. Viver além de suas solidões significa esconder segredos difíceis de controlar sob o perigo de um destino trágico. Como todo bom filme de terror diz mais sobre a humanidade que sua casca pretende contar, uma leitura mais profunda que a própria fábula é possível. De todo modo, o tom consolidado da parceria entre Juliana Rojas e Marcos Dutra é um excelente exercício de construir suspense a partir de elementos como contos de fadas, folclore e bons efeitos especiais, principalmente em relação à qualidade normalmente vista em produções brasileiras. Tais características fazem de “As Boas Maneiras” mais uma ótima inclusão na filmografia do terror nacional.

William Sousa
@williamsousa

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