Cinema com Rapadura

OPINIÃO   quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Culpa (2018): um sonoro suspense

Buscando inovação em como contar uma história, o longa dinamarquês é uma experiência fantástica, além de um suspense convincente.

Assim como uma página em branco, o cinema é o lugar perfeito para uma mente criativa trabalhar. Apesar de sua existência centenária e de uma quantidade incômoda de fórmulas seguidas à risca, a sétima arte ainda é capaz de nos proporcionar inovação, não só no que é contado, mas também no como contar. Assim sendo, o dinamarquês “Culpa” é um casamento perfeito, pois une uma narrativa de suspense instigante a uma forma ousada de como contar uma história.

A premissa do longa é relativamente simples. O policial Asger Holm (Jakob Cedergren, “Esquadrão de Elite”), após aparentemente cometer alguma infração grave, é forçado a trabalhar longe das ruas, recebendo ligações e repassando aos setores responsáveis. A sequência inicial já deixa clara a frustração de Asger de atuar em um ambiente fechado, longe da ação com a qual ele se identifica mais. Isso reflete bem o quanto pessoas que trabalham com situações de emergência acabam sendo (ou se tornando) frígidas e indiferentes, pois essas circunstâncias costumam exigir muito sangue frio por parte dos profissionais – sem falar na já tradicional fleuma dos países nórdicos, o que acentua ainda mais essas características. Isso é muito bem pensado, visto que Asger demonstra, através de uma atuação contida, o quanto é preciso ser calmo nessas tarefas. Porém, à medida que o caso principal da trama se desenrola, ele se mostra alguém muito mais passional, deixando claro que, de fato, ali não é o seu lugar.

O que desencadeia toda a sequência de fatos que dá vida ao filme é a ligação da personagem Iben, para relatar o seu sequestro pelo ex-marido Michael. Asger, então, ignora o fim do seu turno, assim como suas atribuições limitadas, e passa a perseguir sequestrador e vítima, buscando uma resolução para o caso. Até aí nada de novo no front, certo? Errado. O que poderia ser apenas mais uma obra de um policial solitário fazendo justiça com as próprias mãos transforma-se num suspense de qualidade inquestionável, abusando da simplicidade e convidando o espectador a desvendar o mistério junto do protagonista. Como o diretor Gustav Möller conseguiu isso em seu longa-metragem de estreia? Usando todo o potencial do cinema para isto.

Entenda que toda a narrativa contada até agora se passa unicamente no setor de chamadas da polícia onde Asger trabalha. Mais especificamente, em dois únicos cômodos: um onde inicialmente ficam os demais atendentes, e outro mais reservado. A câmera não sai de perto do personagem principal em nenhum dos 85 minutos de duração (sim, é um filme relativamente curto), ficando para nós a missão de construir todo o restante da trama em nossa cabeça. A única coisa que o diretor nos fornece são as ligações de Asger, seja para Iben, Michael, a filha do casal Mathilde, seu amigo Rashid, as centrais de polícia das diferentes regiões da Dinamarca… nada nos é mostrado além do que o protagonista também vai descobrindo no transcorrer da história.

Essa decisão, embora corajosa, não faria de “Culpa” um grande filme por si só. De nada adianta ser inventivo na forma de contar algo se o objeto utilizado não for de qualidade. Felizmente, o roteiro – escrito por Möller em parceria com Emil Nygaard Albertsen – é eficiente em conceber as bolsas de tensão no decorrer da trama (dando ao menos alguns espaços para que recobremos a respiração), além de explicar gradativamente o motivo de Asger estar afastado de suas funções. Convenhamos que por mais entrelaçado e cheio de reviravoltas que fosse o sequestro, dificilmente ele seria suficiente para sustentar todo o tempo de tela da produção.

Aliás, além do texto, a montagem é outro aspecto que merece bastante destaque. Imagine o quão monótono seria um longa onde tudo o que vemos se resume a um homem enquadrado da cintura para cima com um fone na cabeça. Ainda bem que o ritmo está no ponto certo, aliado a cortes dinâmicos e movimentos de câmera precisos, além de vários closes em mãos trêmulas e olhares apreensivos, tudo pensado para fazer a estrela brilhar. E que estrela! Jakob Cedergren está simplesmente fenomenal em sua atuação, indo de uma pedra de gelo a um braseiro em chamas em uma crescente que corresponde perfeitamente aos nossos sentimentos ao ver o filme. Nos identificamos facilmente com o protagonista porque ele age exatamente como um humano comum o faria (ou assim deveria): tendo empatia por quem aparenta precisar de socorro. E a insatisfação com a ineficiência das instituições, atrelada ao sentimento de incapacidade de poder ajudar alguém, acabam ocasionando todas as reações do policial – e as nossas também.

É evidente que revelar muito da trama estragaria a experiência de assistir “Culpa”. E isso porque o roteiro nem apresenta tantos plot twits assim, mostrando-se até previsível em alguns momentos. Contudo, assistir esta pérola do cinema dinamarquês (que nos deu nomes como Mads Mikkelsen e Lars von Trier) é fascinante. O próprio design de som é um show à parte, algo fundamental para que possamos montar as situações ocorridas do outro lado da linha telefônica do protagonista. A obra funciona bem como suspense, mas brilha mesmo como um exercício de cinema, transformando o público em participantes ativos da história, além de idealizadores de personagens e ambientes. Para os que acham que 3D e realidade aumentada são as melhores formas de trazer imersão à sétima arte, fica a lição que às vezes o segredo não é mostrar mais. É mostrar menos, mas com o propósito certo.

Martinho Neto
@omeninomartinho

Compartilhe